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Guerra e Estranhamento

  • Foto do escritor: Giovanni Alves
    Giovanni Alves
  • 2 de set.
  • 23 min de leitura
"Antígona diante do corpo de Polinices" (1865), de Nikiphoros Lytras
"Antígona diante do corpo de Polinices" (1865), de Nikiphoros Lytras

A tradução usual de Entfremdung é "alienação" ou, mais precisamente, "estranhamento". Essa categoria foi utilizada por Hegel, Marx e pela tradição filosófico-social. Interessa-nos, porém, tratar de seu significado no pensamento de Karl Marx e em sua crítica do capital.


Para o jovem Marx, nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, o trabalho estranhado [entfremdete Arbeit] descreve a condição na qual o trabalhador se vê separado do produto de seu trabalho, do próprio ato de produzir, de sua essência genérica [Gattungswesen] e de outros seres humanos. Trata-se de um conceito estrutural, que remete à lógica do modo de produção capitalista. Por exemplo: o operário produz um objeto que não lhe pertence, que se volta contra ele como mercadoria (a passagem de Sache para Ding, ou o processo de coisificação, Verdinglichung), fazendo com que ele perca o controle sobre sua própria atividade e acabe por se perceber como um estranho para si mesmo. Eis os efeitos do trabalho estranhado [entfremdete Arbeit]  sobre o trabalho vivo.


Nos Manuscritos econômico-filosóficos Marx emprega os dois termos - entfremdete Arbeit e Entfremdung -, mas dá primazia a entfremdete Arbeit. O conceito central é “trabalho estranhado” (entfremdete Arbeit), embora apareça também o substantivo abstrato “estranhamento” (Entfremdung ou Entfremdung des Arbeiters, isto é, o estranhamento do trabalhador) usado para descrever a relação do trabalhador com seu produto, sua atividade e sua essência genérica (Gattungswesen).

Em 1844, Entfremdung ainda é uma categoria filosófica, ligada à essência humana, ao Gattungswesen. Em 1845–46, Marx mantém a intuição do estranhamento, mas já o trata como efeito material da divisão do trabalho e da propriedade privada, e não como drama metafísico da essência humana (influenciado por Feuerbach).


Entretanto, o termo estranhamento [Entfremdung] voltou a aparecer nos Grundrisse, reformulado nos termos dialético-materialista da crítica da economia política. Nele Marx retoma e aprofunda o conceito de Entfremdung a ponto de intitular uma seção específica com esse termo. Ao analisar o desenvolvimento das forças produtivas por meio do avanço tecnológico (o sistema de máquinas), Marx identifica uma contradição fundamental entre o trabalho vivo (subjetivo) e o trabalho objetivado (as condições materiais de produção). Essa contradição é essencial para compreender a dinâmica capitalista e a exploração do trabalho assalariado.


Marx destaca que, com o avanço das forças produtivas, as condições objetivas do trabalho – ou seja, os meios de produção, como máquinas, ferramentas, tecnologias (mecanização, automação, digitalização, robótica, inteligência artificial) – crescem em importância relativa em comparação com o trabalho vivo. Isso significa que, para produzir uma quantidade maior de riqueza, é necessário cada vez menos trabalho humano direto.


Em outras palavras, a produtividade do trabalho aumenta, e a riqueza social passa a ser expressa mais nas condições materiais de produção do que no trabalho humano imediato. O desenvolvimento das forças produtivas implica, assim, a anulação da subjetividade do trabalhador singular e a degradação da personalidade humana (como posteriormente destacaria Lukács na sua Ontologia do Ser Social).


Contudo, essa relação entre desenvolvimento tecnológico e trabalho vivo não é neutra.


Do ponto de vista do capital, o trabalho objetivado (como as máquinas) adquire autonomia crescente em relação ao trabalho vivo. As condições materiais de produção, criadas pelo próprio trabalho humano, convertem-se em um poder estranho e dominador sobre o trabalhador. Esse fenômeno é o que Marx denominou nos Grundrisse,  estranhamento. Ele vai além da formulação filosófica da juventude e reformula em termos materialistas o termo. Marx vai reelaborando a problemática do estranhamento (Entfremdung) ao longo da sua obra, desde 1844 até 1867 (O Capital).  


Nos Grundrisse – como destacamos - o termo reaparece, mas já transformado: o dinheiro é a “capacidade estranhada da humanidade”, o trabalho é “estranhado” porque as potências sociais se autonomizam. Aqui Marx reformula o conceito, vinculando-o às formas econômicas objetivas (dinheiro, capital). E numa das últimas seções dos Grundrisse intitulada “Entfremdung”, o conceito de estranhamento adquire uma formulação dialétic0-materilaista que o distingue dos Manuscritos de 1844. Marx desloca o conceito do terreno filosófico (essência, Gattungswesen) para o econômico (dinheiro, circulação, poder social). Vejamos na íntegra o que diz Marx nesta seção (a longa citação é necessária para demonstrar a riqueza analítico-crítica do texto marxiano):


“O fato de que, com o desenvolvimento das forças produtivas do trabalho, as condições objetivas do trabalho, o trabalho objetivado [die vergegenständlichte Arbeit], têm de crescer em relação ao trabalho vivo [lebendige Arbeit] – trata-se, na verdade, de uma proposição tautológica, pois o que significa força produtiva do trabalho crescente senão que se requer menos trabalho imediato para criar um produto maior e que, portanto, a riqueza social se expressa cada vez mais nas condições do trabalho criadas pelo próprio trabalho –, tal fato, do ponto de vista do capital, não se apresenta de tal maneira que um dos momentos da atividade social – o trabalho objetivo [objektive Arbeit] – devém o corpo cada vez mais poderoso do outro momento, do trabalho subjetivo, vivo [subjektive, lebendige Arbeit], mas de tal maneira que – e isto é importante para o trabalho assalariado – as condições objetivas do trabalho [die gegenständlichen Bedingungen der Arbeit] assumem uma autonomia cada vez mais colossal, que se apresenta por sua própria extensão, em relação ao trabalho vivo, e de tal maneira que a riqueza social se defronta com o trabalho como poder estranho e dominador em proporções cada vez mais poderosas. A tônica não recai sobre o ser-objetivado [das Vergegenständlichtsein], mas sobre o ser-estranhado, ser-alienado, ser-venalizado [das Entfremdet-, Entäussert-, Veräussertsein] – o não pertencer-ao-trabalhador, mas às condições de produção personificadas, i.e., ao capital, o enorme poder objetivado que o próprio trabalho social contrapôs a si mesmo como um de seus momentos. Na medida em que, do ponto de vista do capital e do trabalho assalariado, a geração desse corpo objetivo da atividade se dá em oposição à capacidade de trabalho imediata – esse processo de objetivação [Vergegenständlichung] aparece de fato como processo de alienação [Entfremdung], do ponto de vista do trabalho, ou de apropriação do trabalho alheio [Aneignung fremder Arbeit], do ponto de vista do capital –, tal distorção ou inversão [Verkehrung oder Umkehrung] é efetiva e não simplesmente imaginada, existente simplesmente na representação dos trabalhadores e capitalistas. Mas, evidentemente, esse processo de inversão é simplesmente necessidade histórica, pura necessidade para o desenvolvimento das forças produtivas a partir de um determinado ponto de partida histórico, ou base histórica, e de maneira nenhuma uma necessidade absoluta da produção; ao contrário, é uma necessidade evanescente [vergängliche Notwendigkeit], e o resultado e o fim (imanente) desse processo é abolir essa própria base, assim como essa forma do processo.” (Marx, Grundrisse, p. 705)


O desenvolvimento das forças produtivas significa que menos trabalho vivo é necessário para produzir mais riqueza, que se expressa cada vez mais em condições objetivas do trabalho (máquinas, instrumentos, ciência incorporada).


Esse crescimento aparece não como fortalecimento do trabalho social contra si mesmo, mas como autonomização das condições objetivas (die gegenständlichen Bedingungen) frente ao trabalho vivo, transformando-se em poder estranho e dominante. Esse processo é caracterizado como Entfremdung (alienação/estranhamento) do ponto de vista do trabalho, e como Aneignung fremder Arbeit (apropriação de trabalho alheio) do ponto de vista do capital. Ele é uma necessidade histórica transitória (vergängliche Notwendigkeit), não absoluta, cujo resultado imanente é a abolição dessa base histórica.


Portanto, Entfremdung significa aqui não simples objetivação – isto é, Marx distingue Vergegenständlichung (objetivação) de Entfremdung. Objetivar o trabalho (transformá-lo em coisa - Sache) é próprio da atividade humana em geral. O problema é quando essa objetivação não pertence ao trabalhador, mas se torna força autônoma, hostil e dominadora. Por isso Marx escreve: “A tônica não recai sobre o ser-objetivado (das Vergegenständlichtsein), mas sobre o ser-estranhado (das Entfremdetsein).”.


Estranhamento é manifestação do processo de coisificação que caracteriza o metabolismo social do capital: a autonomização das condições objetivas, com o trabalho passado (máquinas, capital fixo, ciência) cresce em proporção ao trabalho vivo. Mas em vez de ser domínio do homem sobre a natureza, esse desenvolvimento aparece como poder social autonomizado, apropriado pelo capital. Esse poder se opõe ao trabalhador como “riqueza social” que não lhe pertence. Aqui, Entfremdung significa a inversão real: o produto do trabalho social confronta o trabalhador como potência estranha. Em termos dialéticos, temos uma dupla perspectiva:


Do ponto de vista do trabalhador, o processo é alienação (Entfremdung), porque suas próprias forças aparecem como forças hostis.


Do ponto de vista do capitalista, o mesmo processo é apropriação de trabalho alheio (Aneignung fremder Arbeit).


Marx enfatiza que esse processo de estranhamento não é uma ilusão ou uma mera construção ideológica: é uma realidade objetiva inerente ao modo de produção capitalista. Não é uma ilusão ideológica, mas uma “distorção efetiva” (Verkehrung oder Umkehrung), estrutural. O trabalhador é separado – alienado – dos meios de produção, os quais são apropriados pelo capital. O trabalho objetivado (como as máquinas) torna-se propriedade do capitalista, enquanto o trabalhador é reduzido à condição de vendedor de sua força de trabalho para sobreviver.


Marx descreve essa dinâmica como uma distorção ou inversão [Verkehrung oder Umkehrung] da relação entre trabalho vivo e trabalho objetivado. Sob o capitalismo, o trabalho vivo (o trabalhador) é subordinado ao trabalho objetivado (máquinas e meios de produção). Essa inversão constitui uma característica essencial do modo de produção capitalista e está na raiz da exploração do trabalhador.


Marx não compreende essa inversão como uma necessidade absoluta ou eterna, mas como um fenômeno historicamente determinado, surgido em um estágio específico do desenvolvimento das forças produtivas. Essa alienação não é destino eterno da humanidade. É uma necessidade transitória (vergängliche Notwendigkeit) do desenvolvimento histórico, ligada ao ponto de partida do capital: o capitalismo, com sua lógica de acumulação e exploração, é uma fase histórica que pode e deve ser superada. O fim imanente desse processo é abolir a própria base que sustenta a alienação (o capital).  A superação do estranhamento exigirá, segundo Marx, uma transformação radical das relações de produção.


Assim, o estranhamento ocorre quando as condições objetivas do trabalho – que, em tese, deveriam servir como meios para a realização da atividade produtiva do trabalhador – transformam-se em forças que o dominam e oprimem. Em vez de controlar os meios de produção, o trabalhador é por eles controlado. A riqueza social, resultado do trabalho humano coletivo, apresenta-se como um poder estranho e hostil ao trabalhador assalariado individual.


Quando o trabalho vivo deixar de ser uma atividade meramente individual e se tornar uma prática social e universal, os meios de produção perderão seu caráter alienante. Em vez de propriedade privada do capitalista, tornar-se-ão propriedade coletiva dos trabalhadores associados. Essa transformação implica a abolição da propriedade privada dos meios de produção e a construção de uma nova base econômica, na qual os indivíduos se reproduzam como seres sociais – e não como entes isolados e explorados. Marx entende essa mudança como resultado imanente do desenvolvimento histórico, conduzindo à superação do capitalismo e à edificação de uma sociedade comunista.


O sistema de máquinas


Esse poder objetivado, que o próprio trabalho social erige contra si mesmo com o desenvolvimento das forças produtivas, materializa-se no sistema de máquinas – que se converte nas condições objetivas do trabalho, no trabalho objetivado. É a expressão da subsunção real do trabalho ao capital. Como destacou Marx, tais condições objetivas do trabalho, o trabalho objetivado no sistema de máquinas, devem crescer em relação ao trabalho vivo, pois “o que significa força produtiva do trabalho crescente senão que se requer menos trabalho imediato para criar um produto maior e que, portanto, a riqueza social se expressa cada vez mais nas condições do trabalho criadas pelo próprio trabalho?”.


É importante salientar que diferentemente do texto dos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, o estranhamento produzido pelo capital – o processo de inversão – “é simplesmente necessidade histórica, pura necessidade para o desenvolvimento das forças produtivas”.


Marx reconhecia que a verdadeira emancipação social só ocorreria a partir de um determinado ponto de partida histórico, ou base histórica de desenvolvimento das forças produtivas criada pela fase histórica do estranhamento capitalista. Era preciso desenvolver o capitalismo – ou as forças produtivas do trabalho criada pelo capital e alienadas do trabalho vivo, que se tornariam a base material da sociedade socialista.


Forças produtivas desenvolvidas sob as relações de produção capitalista não era “de maneira nenhuma uma necessidade absoluta da produção; ao contrário, - diz Marx -  é uma “necessidade evanescente” [vergängliche Notwendigkeit]” e o resultado e o fim (imanente) desse processo é abolir essa própria base, assim como essa forma do processo.”


A expressão "necessidade evanescente" (vergängliche Notwendigkeit) é um conceito denso e crucial para entender sua crítica ao capitalismo e sua visão de uma sociedade pós-capitalista.


Num primeiro momento, como ele fez nos Manuscritos econômico-filosoficos de 1844, ao tratar do trabalho estranhado [Entfremdete arbeit], Marx está analisando nos Grundrisse, como o trabalho, que deveria ser a expressão vital e criativa do ser humano, se torna uma atividade estranhada (alienada) sob o capitalismo.


O trabalho não é mais uma necessidade interior do indivíduo, mas uma necessidade imposta externamente, isto é, meio para um fim na medida em que o trabalho é apenas um meio para satisfazer necessidades externas a ele, principalmente a necessidade de sobreviver, de ganhar dinheiro para comprar comida, moradia, etc. É uma compulsão pois o trabalho assalariado é realizado sob coação, a coação econômica da necessidade material. Se o trabalhador não vender sua força de trabalho, ele morre de fome. É sacrifício pois o trabalho é vivido como uma negação de si mesmo, um sacrifício, uma atividade que só termina para dar lugar ao verdadeiro prazer (o ócio, o consumo). É nesse contexto que a frase contendo "necessidade evanescente" aparece na citação acima dos Grundrisse.


Marx contrasta a visão burguesa do trabalho com sua própria visão histórica e projetada para o futuro (o que ele não fez Manuscritos econômico-filosóficos de 1844). O desenvolvimento das forças produtivas, o desenvolvimento tecnológico – sob as bases históricas capitalistas - criaria as bases materiais para a emancipação do trabalho social tendo em vista que a produção burguesa é só uma "necessidade evanescente" (vergängliche Notwendigkeit) – necessária, mas transitória.


Necessidade (Notwendigkeit) diz respeito à coação, à obrigação imposta por forças externas. Não é uma "necessidade" no sentido de um desejo interno genuíno, mas uma necessidade coercitiva. Evanescente (Vergängliche) significa transitória, perecível, passageira, que está fadada a desaparecer. Algo que tem um carácter histórico, não eterno. Portanto, "necessidade evanescente" significa que a coação econômica que força os homens a trabalhar de forma alienada é uma característica histórica específica do modo de produção capitalista e, como tal, não é eterna – ela está fadada a ser superada e desaparecer tendo em vista que ele – o modo de produção capitalista – criou as bases materiais para uma sociedade comunista em que o trabalho – por conta do desenvolvimento tecnológico – seria "atividade livre".


Portanto, Marx opõe essa "necessidade evanescente" do trabalho estranhado – que impulsiona o desenvolvimento das forças produtivas sociais - à sua concepção do que seria o trabalho numa sociedade comunista, que ele descreve como "autoatividade" (Selbstbetätigung) ou "atividade livre".


Nessa sociedade futura, uma vez superada a escassez material e a luta pela sobrevivência imediata (através da automação e da posse coletiva dos meios de produção), o trabalho mudaria radicalmente de natureza. O trabalho se tornaria a própria necessidade vital do homem, não um meio para uma necessidade externa. A atividade produtiva seria uma expressão de criatividade, de capacidades e de prazer. A "esfera da necessidade" (o trabalho necessário para reproduzir a vida) seria reduzida ao mínimo e administrada coletivamente. O verdadeiro reino da liberdade começaria para além dela, onde os indivíduos poderiam se dedicar a atividades livremente escolhidas pelo seu próprio valor. O objetivo da produção não seria mais a acumulação de valor (capital), mas o desenvolvimento livre da individualidade de cada um.


Portanto, enquanto nos Manuscritos econômico-filosoficos de 1844, o desenvolvimento capitalista só representa mais empobrecimento humano por conta do trabalho estranhado, nos Grundrisse, Marx reconhece que, o desenvolvimento capitalista e o próprio estranhamento são características históricas específica de uma forma social  que surgiu em determinadas condições, tendo sido uma necessidade  para o desenvolvimento das forças produtivas – “é simplesmente necessidade histórica, pura necessidade para o desenvolvimento das forças produtivas” - e que, portanto, irá desaparecer (é "evanescente") quando essas condições forem superadas por uma revolução socialista.


A nova sociedade socialista não pode ser uma sociedade de escassez, mas sim sociedade da abundância. O socialismo, e principalmente o comunismo em sua fase superior, é conceptualizado como uma sociedade da abundância, e não da escassez. A superação da "necessidade evanescente" (a coação para trabalhar de forma alienada) só é possível quando a base material da escassez é eliminada.


Marx não nega que a humanidade sempre enfrentou a escassez. No entanto, ele argumenta que o capitalismo, de forma contraditória, gera uma abundância material nunca antes vista por conta do desenvolvimento das forças produtivas, mas a distribui de maneira tão desigual que a maioria da sociedade continua a viver em estado de necessidade e escassez relativa.


O capitalismo desenvolve as forças produtivas (máquinas, tecnologia, ciência) a um ponto onde o potencial para suprir as necessidades básicas de todos existe. No entanto, a produção não é orientada para satisfazer necessidades humanas, mas para a accumulação de capital e a geração de lucro. Isso leva à superprodução, ao desperdício e à restrição artificial da produção para manter os preços e a lucratividade.


Portanto, a escassez sob o capitalismo é, em grande medida, uma escassez socialmente imposta, não absoluta. É uma escassez dentro da abundância. O socialismo (a fase inferior da sociedade comunista, conforme descrita por Marx em Crítica ao Programa de Gotha) começa a reorganizar a sociedade para superar essa contradição com a socialização dos meios de produção.


Ao colocar as fábricas, terras e bancos sob controle social, a produção pode ser planeada democraticamente para atender às necessidades humanas, e não à busca do lucro. Com a automação e a eliminação do trabalho redundante e da produção destrutiva (ex.: publicidade excessiva, obsolescência programada), a quantidade de trabalho necessária para manter a sociedade diminui drasticamente. Isto é crucial.


O objetivo desta fase histórica – a transição socialista - é expandir massivamente a base de abundância. A sociedade trabalha coletivamente para garantir que bens e serviços essenciais (comida, habitação, saúde, educação, transporte) estejam disponíveis para todos, superando a escassez material básica. Nesta fase, o princípio distributivo é: "De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo seu trabalho". Ainda há elementos de "direito burguês", pois pessoas com habilidades diferentes recebem quantidades diferentes. Mas a necessidade económica coercitiva já começa a enfraquecer.


É na fase superior do comunismo que a abundância plena se realiza, tornando a "necessidade evanescente" realmente evanescente (isto é, fazendo-a desaparecer). A abundância não significa uma pilha infinita de todos os bens imagináveis para todos. Significa, sobretudo, que as necessidades básicas são totalmente e gratuitamente satisfeitas. O tempo de trabalho necessário é reduzido ao mínimo graças à automação completa e à eficiência.  Surge uma abundância de tempo livre – o verdadeiro espaço para o desenvolvimento humano.


Com a escassez material radicalmente reduzida, a luta pela existência imediata (a "necessidade evanescente") deixa de ser a força motriz da sociedade. A coação para se trabalhar num emprego alienante para sobreviver desvanece-se. O trabalho deixa de ser uma mera obrigação pois torna-se uma atividade livre - uma expressão de capacidades e criatividade. Algo tão natural e gratificante como pintar, estudar ou praticar um desporto por prazer. Os indivíduos podem dedicar-se a diversas actividades sem ficarem presos a uma única profissão alienante. O princípio distributivo torna-se: "De cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades!". Isto só é possível numa base de abundância genuína. A famosa frase de Marx nos Grundrisse encapsula esta ideia:


"O roubo do tempo de trabalho alheio, sobre o qual se baseia a riqueza atual, aparece como uma base miserável comparada com o novo base desenvolvida, criada pela própria grande indústria. Assim que o trabalho em sua forma imediata tiver cessado de ser a grande fonte da riqueza, o tempo de trabalho deixa, e tem que deixar, de ser a sua medida." (Marx, Grundrisse)


A riqueza deixa de ser medida pelo tempo de trabalho gasto (a lógica da escassez) e passa a ser medida pelo tempo livre disponível (a lógica da abundância), que é o espaço para o desenvolvimento pleno do indivíduo. A "necessidade evanescente" é a coação que precisa de desaparecer para que esta transição aconteça. Neste sentido, o desenvolvimento das forças produtivas do trabalho, as condições objetivas do trabalho, o trabalho objetivado [die vergegenständlichte Arbeit], que crescem em relação ao trabalho vivo [lebendige Arbeit] não se colocam contra ele (o estranhamento) – pelo contrário, tornam-se a base material de sua própria emancipação social.


Portanto, em outras palavras, Marx está afirmando que a forma como experimentamos o trabalho hoje – como uma obrigação penosa – não é o destino inevitável da humanidade. É uma fase passageira na história, que será substituída por uma forma de atividade mais livre, criativa e gratificante, onde o trabalho se tornará uma necessidade interior e uma expressão de liberdade, e não de mera sobrevivência.


Capitalismo desenvolvido e a máquina de guerra


O capitalismo, em sua fase desenvolvida, pode ser compreendido como um sistema de máquinas. Sua dinâmica funda-se na subsunção real do trabalho ao capital, na qual o processo produtivo não apenas utiliza, mas é reconfigurado pelas exigências da valorização. Nesse sentido, a máquina não é apenas um artefato técnico, mas uma forma social de dominação, expressão material do capital que organiza e controla tanto o trabalho quanto o conjunto da vida social. Como sublinhou Marx nos Grundrisse, a maquinaria torna-se “o sistema automático do capital” (automatisches System der Maschinerie), incorporando ciência e tecnologia em escala social.


A lógica estranhada do capital, objetivada nas máquinas, permeia todo o metabolismo social: a máquina do trabalho, a máquina da manipulação do consumo e da política e a máquina da guerra são todas dimensões de um mesmo processo histórico em que a técnica é subsumida às exigências da acumulação. O capitalismo desenvolvido é, portanto, um sistema-máquina sob o comando do capital.


Embora a guerra acompanhe a história da humanidade desde sociedades marcadas pela escassez e pela divisão de classes, sua forma moderna, enquanto sistema-máquina, é inseparável do capitalismo industrial em sua etapa monopolista. Como mostrou Lênin em O Imperialismo, fase superior do capitalismo (1916), o monopólio, a concentração do capital e a fusão entre capital bancário e capital industrial geram a tendência ao expansionismo imperialista. Nesse quadro, a guerra torna-se não um acidente, mas uma função estrutural do sistema. É nesse contexto que se consolida o complexo industrial-militar, no qual a instituição militar se articula organicamente ao capital monopolista, transformando a guerra em um setor de investimento e em motor de acumulação. Rosa Luxemburg, em “A Acumulação do Capital” (1913), já advertia que o militarismo, longe de ser mero fenômeno político, constitui um campo de realização de mais-valia e de expansão do capital.


Nos Estados Unidos, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, esse fenômeno assumiu sua expressão máxima: o complexo industrial-militar, apontado por Eisenhower em 1961, tornou-se não apenas um setor econômico estratégico, mas uma cultura social voltada para a guerra, inseparável da lógica imperialista de um capitalismo em escala mundial. Ernest Mandel, em “O Capitalismo Tardio” (1972), interpretou esse processo como uma das bases da acumulação bélica e da economia de guerra permanente que caracterizam o capitalismo monopolista de Estado.


Na era do capital, a guerra impulsiona tanto a inovação tecnológica quanto a produção de mercadorias de consumo. No entanto, ao lado dessa dimensão “produtiva”, a guerra intensifica a capacidade destrutiva em escala inédita. Como destacou István Mészáros em “O Século XXI: Socialismo ou Barbárie?” (2001), a guerra permanente tornou-se parte da lógica sistêmica do capital, funcionando como válvula de escape para sua crise estrutural.


Dessa forma, o complexo industrial-militar se converte em uma máquina do capital que promove guerras perpétuas, banaliza a morte, destrói vidas e desumaniza tanto os soldados quanto todos os envolvidos em sua engrenagem. O que se revela, em última instância, é o caráter contraditório do progresso capitalista: ao mesmo tempo em que amplia a riqueza social sob a forma de forças produtivas, reforça a barbárie social pela via da destruição em massa.


Portanto, o sistema-máquina do capital mostra que a lógica da valorização não se restringe ao campo da produção de mais-valor, mas abarca o conjunto das práticas sociais. A guerra, sob o capitalismo monopolista, não é apenas um instrumento de dominação, mas uma engrenagem essencial do metabolismo do capital, que articula produção, consumo, tecnologia, subjetividade e destruição.


Se, como afirma Marx, “o capital é trabalho morto que só vive ao sugar trabalho vivo”, pode-se dizer que a máquina de guerra é a expressão extrema desse parasitismo: trabalho humano convertido em potência destrutiva, objetivado em armas, bombas e tecnologias de morte. O desafio histórico — já antecipado por Rosa Luxemburg — é claro: diante de um sistema que transforma a guerra em máquina perpétua, a humanidade se vê confrontada com a alternativa entre socialismo ou barbárie.


Na concepção de estranhamento de Marx nos Grundrisse salientou-se a discrepância entre o desenvolvimento social e o individual. Foi o que verificamos acima quando Marx destacou a subsunção real do trabalho ao capital com o aumento da produtividade do trabalho, o aumento da capacidade da produção social, mas – ao mesmo tempo – o empobrecimento do trabalho vivo. O desenvolvimento das forças produtivas do trabalho, as condições objetivas do trabalho, o trabalho objetivado [die vergegenständlichte Arbeit], crescia em relação ao trabalho vivo [lebendige Arbeit], confrontando-o e eliminando-o. Esta é uma contradição central do capitalismo industrial diagnosticada por Marx: o aumento colossal da produtividade social ocorre às custas da condição do trabalhador individual.


Nos Manuscritos de 1844, Marx observou que “o trabalhador se torna mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão”; paralelamente, “o trabalhador torna-se uma mercadoria tanto mais barata quanto maior o número de bens produz”, ou seja, quanto mais a riqueza das coisas cresce, mais decresce o valor do homem. Nessa ordem social do capital, a máquina e a fábrica elevam a capacidade produtiva da sociedade, mas reduzem o operário a um apêndice da máquina, exigindo dele apenas gestos repetitivos e mecânicos.


Em outras palavras, o progresso técnico sob o capital despersonaliza e degrada a personalidade do trabalhador individual, alienando-o do produto de seu trabalho e de sua própria humanidade. Esse processo é o cerne da Entfremdung – a alienação ou estranhamento do trabalhador em relação à sua atividade e aos frutos dela. O resultado é uma sociedade objetivamente mais rica e produtiva, porém marcada pela pobreza material-espiritual relativa, pela perda de autonomia e pela desumanização do trabalhador individual.

Karl Marx nos Grundrisse acreditava que o desenvolvimento do capitalismo ou o desenvolvimento das forças produtivas ou o desenrolamento tecnológico “é simplesmente necessidade histórica, pura necessidade para o desenvolvimento das forças produtivas a partir de um determinado ponto de partida histórico” que criaria as bases materiais para uma nova sociedade socialista na medida em que o trabalho vivo abolisse “essa própria base, assim como essa forma do processo” do trabalho estranhado que seria tão-somente “uma necessidade evanescente [vergängliche Notwendigkeit]”.


Com a abolição das relações sociais de produção capitalista iria ser abolido o paradoxo entre a “riqueza social” e a “miséria do trabalho vivo” – no capitalismo desenvolvido quanto mais valor se gera coletivamente, menos valorizada é a vida do proletário isolado. Entretanto – eis a questão - a crítica marxiana do estranhamento focava-se no processo produtivo do capital.

 

A outra dimensão do estranhamento


O que Marx não pôde enfatizar em detalhe – dada as limitações de sua época – foi uma nova disparidade emergente no século XX: a mesma ciência e técnica que multiplicaram a capacidade produtiva humana também multiplicaram seu potencial destrutivo. Ou seja, além de produzir mercadorias em massa, a sociedade capitalista desenvolveu a capacidade de destruir em massa.


O desenvolvimento das forças produtivas do trabalho, as condições objetivas do trabalho, o trabalho objetivado [die vergegenständlichte Arbeit] desenvolvido pela grande indústria capitalista expós “uma base miserável comparada com as possibilidades de uma nova base desenvolvida” capaz de emancipar o trabalho social. Mas ao mesmo tempo, expós não apenas as possibilidades de emancipação do trabalho vivo para além da escassez socialmente imposta pelo capital, mas as possibilidades terríveis da destruição em massa da humanidade na medida em que o desenvolvimento das forças produtivas se tornaram – na mesma medida também - o desenvolvimento das forças destrutivas do capital por meio das guerras e da devastação socioambiental.


A nova era do capital promoveu mudanças significativas na forma e no conteúdo das guerras. Embora – como dissemos acima – os conflitos bélicos façam parte da história da espécie humana sob condições de escassez, com o advento do capitalismo monopolista e do desenvolvimento tecnológico, as guerras adquiriram um caráter maquínico. No início do século XX, Rosa Luxemburgo já resumia esse dilema histórico na fórmula “socialismo ou barbárie” (o que se viu desde a Primeira Guerra Mundial e, mais adiante, com a bomba nuclear), pressentindo que o progresso técnico-científico poderia descambar em catástrofe. De fato, as décadas posteriores testemunharam duas guerras mundiais, genocídios e a bomba atômica – uma barbárie social de escala inédita, possibilitada precisamente pelo “sucesso” produtivo e científico. Assim, ao lado da fábrica que enriquece a sociedade enquanto empobrece o operário, ergueu-se a máquina de guerra: um aparato institucional capaz de converter as conquistas da civilização em instrumentos de aniquilação.


Progresso e Barbárie: a perspectiva de Walter Benjamin


Esse reverso sombrio do progresso foi capturado de forma aguda pelo filósofo Walter Benjamin. Em suas Teses sobre o Conceito de História (1940), Benjamin desafia a noção ingênua de progresso contínuo, afirmando que aquilo que chamamos de “progresso” muitas vezes não passa de uma tempestade de destruição que se acumula sobre as ruínas do passado. Sua alegoria do “anjo da história” é emblemática: o anjo olha para trás e vê uma sequência interminável de destroços – “uma catástrofe única, que sem cessar amontoa ruína sobre ruína” –, mas não consegue deter o vendaval que o impele para o futuro. Esse vendaval irresistível é o que chamamos de progresso. Ou seja, para Benjamin, cada avanço histórico traz em seu bojo uma contradição catastrófica: não há conquista civilizatória que não seja paga com alguma forma de barbárie. Ele sintetiza essa ideia na máxima de que “nunca há um documento de cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento de barbárie”. Os grandes feitos materiais da humanidade – pontes, catedrais, riquezas nacionais – frequentemente ocultam a exploração, a violência e o sofrimento que os tornaram possíveis.


No contexto do século XX, Benjamin identifica na guerra total e na estética fascista da destruição a culminação dessa dialética perversa entre progresso e barbárie. No epílogo de seu ensaio A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica (1936), ele nota que a humanidade, ao se alienar de si mesma pelas tecnologias modernas, chegou ao ponto de “vivenciar a própria destruição como um prazer estético de primeira ordem”. Aqui Benjamin faz referência direta à glorificação da guerra pelas ideologias fascistas (como no futurismo italiano), para as quais a guerra é bela porque confere um senso de propósito e exaltação estética às massas tecnologicamente alienadas. Trata-se da “estetização da política” pelo fascismo – uma encenação épica do poder destrutivo que oferece espetáculo no lugar de emancipação.


Essa observação benjaminiana ecoa inquietantemente a realidade das guerras modernas: as mesmas máquinas que ampliam o poder humano de criar riqueza também ampliam o poder de semear a destruição em massa, a ponto de a aniquilação do outro (e de si próprio) poder ser celebrada como um ato “heróico” ou redentor. Em suma, para Benjamin o “progresso” técnico-científico, sob relações sociais fetichistas, carrega em si uma semente autodestrutiva – um potencial de barbárie que desmente a glorificação triunfalista da civilização. O ápice histórico desse processo viu-se na época do complexo militar-industrial, especialmente nos Estados Unidos do pós-1945, que elevaram a capacidade destrutiva humana a patamares inimagináveis.


A Máquina de Guerra e o Complexo Militar-Industrial


O século XX comprovou tragicamente essa fusão de progresso e barbárie: a indústria moderna, originalmente destinada à produção em massa, foi convertida em uma indústria da destruição em massa. A máquina militar – composta por exércitos mecanizados, armamentos químicos, bombardeiros e ogivas nucleares – tornou-se o avesso sinistro da máquina produtiva: em vez de bens, produz mortes; em vez de enriquecer a vida, semeia ruínas.


A Primeira Guerra Mundial já evidenciou como a tecnologia industrial (metralhadoras, artilharia, gás venenoso) dizimou soldados em escala industrial, chocando pensadores da época. Nas décadas seguintes, a corrida armamentista consolidou-se como um setor econômico próprio. Nos EUA, em particular, o esforço da Segunda Guerra Mundial e a posterior Guerra Fria levaram à formação do maior aparato bélico já visto – o que o presidente Dwight D. Eisenhower batizou de “complexo militar-industrial”. Em seu famoso discurso de 1961, Eisenhower alertou que os Estados Unidos haviam se visto “compelidos a criar uma indústria permanente de armamentos e a montar uma enorme força militar” após 1945. Esse gigantesco aparato integrava forças armadas, indústria bélica e centros de pesquisa tecnológica, canalizando uma parcela enorme dos recursos e do talento científico da sociedade para fins de guerra. Eisenhower, um general vitorioso tornado presidente, advertiu contra o perigo de tal complexo adquirir “influência injustificada” e capturar as políticas públicas, tornando-se um poder por si só – quase um “sujeito automático” tecnológico-militar que subjuga a sociedade.


De fato, o complexo militar-industrial norte-americano representou a institucionalização máxima da barbárie tecnificada: a riqueza social e o know-how científico acumulados passaram a manifestar-se na capacidade de destruição global, com arsenais capazes de negar em minutos toda a riqueza social produzida.


Esse “novo contraste” – a riqueza social expressa como poder de aniquilação em massa, negação absoluta da própria riqueza social e da vida humana – redefine a crítica do estranhamento e do progresso.


Se Marx vira a alienação como o empobrecimento do trabalhador frente à riqueza que ele próprio gera, agora a alienação assume um caráter ainda mais sombrio: a riqueza científica e produtiva acumulada pela humanidade volta-se contra a própria humanidade na forma de bombas, tanques e mísseis.


O trabalho vivo, que Marx via espoliado de seu valor pelo capital, encontra sua negação derradeira quando os produtos do trabalho (as máquinas, as fábricas, a energia atômica) se convertem em instrumentos de morte que ameaçam trabalhadores e capitalistas indistintamente. Essa é a barbárie social moderna, em que o progresso técnico desfigurado pelo capital assume feições autoaniquiladoras.


Como vimos acima, Walter Benjamin anteviu esse cenário nos anos 1930 ao notar que, sob o fascismo e o imperialismo, o progresso caminhava “de mãos dadas com a destruição” – a ponto de a humanidade alienada aplaudir tanques em paradas militares e cogumelos atômicos como símbolos de poder. Em suma, a máquina militar contemporânea evidencia o ponto em que o desenvolvimento das forças produtivas cruza o limiar da autodestruição: é o progresso que se nega a si mesmo, a civilização convertida em barbárie social (a barbárie que se caracteriza como escassez socialmente produzida).


Em síntese, o conceito de estranhamento refere-se ao metabolismo social do capital, o qual implica não apenas a esfera da produção, mas também outras dimensões da vida social que adquirem um caráter maquínico. Destaca-se, assim, a natureza das guerras que – à semelhança da produção de mais-valor – incorporam e conduzem o desenvolvimento tecnológico do sistema capitalista, orientando-o para o aprimoramento contínuo de forças destrutivas, cujo ápice é o poder de aniquilação nuclear.


Desse modo, o conceito ampliado de estranhamento revela que a história da humanidade sob o capital – isto é, sob um metabolismo social baseado na divisão hierárquica do trabalho, na extração do sobre-trabalho[1] e no poder da classe dominante – é também a história do desenvolvimento das forças produtivas e destrutivas do trabalho social. Sua expressão suprema manifesta-se em duas dimensões:


No trabalho, a propriedade privada dos meios de produção gera condições objetivas e subjetivas alienadas que se confrontam com o trabalho vivo, resultando na desumanização do trabalhador.


Na guerra, o comando burocrático político-hierárquico do capital – sob condições da lógica bélica impulsionada pelo colonialismo e imperialismo – promove, pari passu com o aumento da capacidade destrutiva, a desumanização de soldados e comandantes. Todos estão inseridos em uma estrutura militar burocrática igualmente estranhada, na qual se efetiva a subsunção bélica do trabalho vivo ao capital. Portanto, a máquina institucional militar e a guerra representam uma das expressões supremas do estranhamento e da desumanização humana – tão fundamentais para a reprodução do capital quanto o trabalho alienado originalmente descrito por Marx.

 


[1] Como afirma Mészáros, "o capital, ao longo de sua constituição histórica, tornou-se o mais poderoso extrator de excedente conhecido da humanidade – uma verdadeira 'bomba de extração', nos termos de Marx" ("Para além do capital", p. 199). Desse modo, o alavancamento da capacidade produtiva – isto é, da extração de excedente – desenvolve-se pari passu com o aumento da capacidade de destruição em massa.


 
 
 

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