As Metamorfoses do Estranhamento - Parte 2
- Giovanni Alves

- 23 de jul.
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Atualizado: 2 de set.

Na primeira postagem da série “Metamorfoses do Estranhamento” analisamos as transformações qualitativas do conceito de estranhamento (Entfremdung) no pensamento de Karl Marx, especialmente no contexto da transição da subsunção formal para a subsunção real do trabalho ao capital, conforme desenvolvido na crítica da economia política.
Argumentamos que com a subsunção formal, o capital se apropria de formas preexistentes de trabalho, sem alterar profundamente o processo produtivo. Aqui, o trabalhador já está alienado dos meios de produção e vende sua força de trabalho.
Na subsunção formal, a reificação (Versachelichung) caracteriza o sociometabolismo do capital: os sujeitos aparecem como coisas, e as relações sociais como relações entre objetos. Instara-se, deste modo, o primeiro momento da inversão [Verkehrung] sujeito-objeto. A reificação é o modo de aparecer [Erscheinungsform] da objetividade social.
Inversão [Verkehrung] e Fetichismo [Fetichismus]
Em Marx, a inversão sujeito-objeto não é apenas semântica ou moral, mas sim estrutural e ontológica. Ela designa uma transformação na qual a relação entre essência e aparência é revertida. Deste modo, o que é produto da ação humana aparece como força autônoma; o que é social aparece como natural; o que é subordinado aparece como dominante. Diz Marx:
Das gesellschaftliche Sein erscheint verkehrt als ein sachliches Verhältnis” — "O ser social aparece invertido como uma relação entre coisas. (Das Kapital, Bd. 1)
Esta é a inversão do sujeito e do predicado: os produtos do trabalho aparecem como sujeitos (dotados de agência), enquanto os próprios produtores aparecem como coisas (dotadas de passividade). Essa inversão é constitutiva da forma-mercadoria e da forma-valor que predominam no ser social capitalista.
Esse modo de aparecer [Erscheinungsform] – a reificação e depois, a coisificação – se manifesta no plano da consciência social, como fetichismo: o fetichismo é a consciência invertida, fenômeno social em que as relações sociais entre os homens assumem a forma fantasmagórica de relações entre coisas.
Aqui, o conceito de Verkehrung [Inversão] está diretamente relacionado ao "Schein" (aparência) e ao "Erscheinung" (manifestação fenomênica), que escondem a essência real das relações:
Der Fetischcharakter der Ware beruht... auf dieser Verkehrung: die gesellschaftlichen Charaktere der Arbeit erscheinen als gegenständliche Charaktere der Arbeitsprodukte.
— “O caráter fetichista da mercadoria repousa sobre essa inversão: os caracteres sociais do trabalho aparecem como caracteres objetivos dos produtos do trabalho.” (Kapital, I)
A consciência percebe como realidade o que é aparência e ignora a estrutura que a produz.
O fetichismo é o efeito ideológico dessa inversão, no plano da forma de consciência. A inversão da consciência é efeito da inversão real das relações sociais no capitalismo.
Reificação e coisificação
No plano do ser social, a reificação (Verdinglichung) e a coisificação (Versachlichung) são as formas objetivas diferenciadas dessa inversão. Aqui, a inversão não se dá apenas na representação ou na ideologia – o caráter fetichista -, mas na estrutura objetiva da vida social:
• Reificação: as relações sociais tornam-se relações entre Sachen (coisas sociais), isto é, objetividades dotadas de regularidade jurídica, técnica e econômica. A reificação é a transformação das pessoas em coisas. O trabalho vivo enquanto força de trabalho adquire a forma-mercadoria sendo coisa descartável pelo capital. As pessoas aparecem como coisas e as coisas – trabalho assalariado, dinheiro, mercado – dominam as pessoas. Neste primeiro estágio, a mistificação do capital apenas se inicia, pois a própria coisa [Sache] – o capital – aparece como sendo uma relação social – uma relação entre pessoas – apenas que invertida.
• Coisificação é a mistificação do capital propriamente dita: os sujeitos tornam-se efetivamente coisas (Dinge) ou personificação da coisa. A dimensão das relações entre coisas [Sachen] é eliminada, e uma coisa [Ding] se apresenta como portadora de propriedades distintas. Coisificação são as coisas conduzindo as pessoas e as pessoas incorporando as coisas: personificação das coisas. Sua atividade, sua subjetividade, sua individualidade são subordinadas às exigências formais do capital, da produtividade, da concorrência. Eles são reduzidos à condição de partes funcionais do processo de valorização do capital.
Das gesellschaftliche Verhältnis erscheint als Naturverhältnis.
— “A relação social aparece como relação natural.” (Kapital, I)
A "relação coisificada" (verdinglichtes Verhältnis) é, pois, o resultado da inversão estrutural na sua dimensão plena, que confere objetividade e autonomia aos produtos do próprio trabalho humano, fazendo com que eles se voltem contra seus criadores não apenas como potências estranhas, mas forças naturais. A inversão aqui não é apenas ideológica, mas ontológica e prática, pois estrutura o cotidiano, o tempo, o corpo e a subjetividade.
Com a Subsunção real, e a coisificação que lhe é própria, o capital reorganiza totalmente o processo de trabalho e as bases da vida social, moldando ciência, tecnologia, subjetividade e natureza conforme sua lógica de valorização. Nesta etapa, temos a efetiva mistificação do capital.
A coisificação (Verdinglichung) caracteriza o sociometabolismo do capital na era do modo de produção especificamente capitalista.
Como observamos na postagem anterior, a relação sujeito-objeto se dissolve e se torna uma relação coisa-consigo-mesma (C = C).
O sujeito é in-corporado à lógica do capital como uma coisa-pessoa (Cp), que expressa simultaneamente identidade e não-identidade com a coisa. Instaura-se o segundo momento da inversão sujeito-objeto com o sujeito sendo negado pelo objeto coisal (negado mas não suprimido). Aprofunda-se o caráter fetichista das coisas. O mundo passa a ser percebido como regido por leis naturais autônomas, quando na verdade são construções sociais mediadas por relações de classe.
Quando o capital consuma a sua mistificação com a subsunção real do trabalho ao capital, não apenas se aprofunda o fetichismo - capital, mercado, técnica e dinheiro aparecem como forças com vontade própria, mas os sujeitos tornam-se suportes funcionais dessas forças que se opõem a eles, intensificando, deste modo, o estranhamento [Entfremdung]
ATENÇÂO
Deste modo, reificação, coisificação (e personificação da coisa) e ainda, fetichismo (consciência invertida reificada/coisificada), são formas do metabolismo social do capital que aprofundam o estranhamento [Entfremdung]. Eles não são – a rigor - formas do estranhamento, mas sim do metabolismo social do capital que provoca o estranhamento. Eis a formulação mais precisa da problemática.
A transição da reificação à coisificação, culminando no fetichismo generalizado, expressa a constituição de uma sociabilidade em que as relações sociais são mediadas exclusivamente por coisas, e os sujeitos são convertidos em funções operacionais do capital.
Como conceber uma a teoria da subjetividade e da praxis política na era da coisificação tendo em vista que os sujeitos se tornam – ou melhor, aparecem – como suportes funcionais das coisas (Ding), forças do capital que se opõem a eles?.
Como salientamos na postagem anterior, embora o sujeito esteja subsumido à lógica do capital com a passagem da subsunção formal à real, o complexo do estranhamento - que se torna condição estruturante da sociabilidade do capitalismo histórico – contém em si, a “contradição viva” do capital, abrindo a possibilidade da praxis e a possibilidade de refletir o fim do capitalismo. Isto conduz à teoria da praxis ou da ação transformadora frente à forma social fetichista dominante.
O estranhamento
O conceito de estranhamento (Entfremdung) em Marx representa a profunda cisão entre as singularidades humanas concretas — ou seja, os trabalhadores enquanto indivíduos históricos e sensíveis — e as capacidades sociais produzidas coletivamente, representadas pelo desenvolvimento das forças produtivas, que são expropriadas pelo capital e passam a existir como se fossem propriedades naturais deste.
Assim, o que foi gerado pelo trabalho humano aparece como algo externo, hostil e autônomo diante daqueles que o produziram.
É nesse sentido que se pode compreender o caráter ontológico do estranhamento: o desenvolvimento histórico do capital promove uma duplicação contraditória entre, de um lado, a crescente potencialidade social da produção — fruto da cooperação, da técnica, da ciência [por exemplo, a Inteligência Artificial, etc] — e, de outro, o empobrecimento existencial - fisico-mental - das individualidades humanas, reduzidas à condição de mera força de trabalho subsumida.
Essa formulação já está presente nos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, nos quais Marx descreve o trabalho estranhado como aquele em que o ser humano não se reconhece em sua própria atividade, nem nos produtos que dela resultam, porque estes lhe são arrancados e enfrentam-no como forças estranhas [Dinge]. Isto ocorre por causa da propriedade privada dos meios de produção.
Nos Grundrisse, Marx encontra a causalidade efetiva do estranhamento: “o não pertencer-ao-trabalhador, mas às condições de produção personificadas, i.e., ao capital, o enorme poder objetivado que o próprio trabalho social contrapôs a si mesmo como um de seus momentos”.
A alienação do trabalho, a raiz do estranhamento que se generaliza pela totalidade social, é, portanto, uma forma específica de negação da subjetividade dos trabalhadores singulares.
Em 1844, nos Manuscritos de Paris, Marx afirmou, de maneira contundente:
“Quanto mais o trabalhador produz, tanto menos ele tem para consumir; quanto mais valores cria, tanto mais ele se desvaloriza; quanto mais seu produto é dotado de forma, tanto mais ele se desfigura; quanto mais civilizado seu objeto, tanto mais bárbaro o trabalhador; quanto mais poderoso o trabalho, tanto mais impotente o trabalhador; quanto mais espiritualmente o trabalho se manifesta, tanto mais ele se torna corpo sem espírito.”
(Je mehr der Arbeiter produziert, desto weniger kann er verbrauchen; je mehr Werte er schafft, desto mehr Wertlosigkeit, Entwürdigung, Unmenschlichkeit schafft er für sich selbst...)
Marx, Manuscritos de 1844, Terceiro Manuscrito: “Propriedade privada e trabalho”
Essa passagem resume de forma lapidar o processo pelo qual o trabalhador, quanto mais contribui para o progresso da riqueza material por conta do desenvolvimento de suas capacidades produtivas – a maior parte delas objetivadas em formas tecnológicas - por outro lado, mais se empobrece humanamente, pois essa riqueza das forças produtivas que pertencem ao capital, se acumula fora dele e contra ele.
A inversão entre sujeito e objeto, típica da sociedade capitalista, expressa-se aqui como um processo no qual o produto do trabalho [Sache] torna-se poder autônomo e hostil [Dinge] — uma forma de dominação objetiva que despoja o trabalhador singular de si mesmo.
Marx utiliza nesta passagem os termos Wertlosigkeit, Entwürdigung, Unmenschlichkeit – eles representam o rico significado do estranhamento:
Wertlosigkeit, etimologicamente “Wert” = (valor), “-los” = (sufixo que indica ausência), “-igkeit” = (sufixo que forma substantivos abstratos) = "Ausência de valor", "falta de valor", "nulidade", "desvalorização".
Marx usa o termo Wertlosigkeit de forma dialética e crítica, em contraposição ao fato de que o trabalhador produz "valores" (Werte) para o capital — ou seja, valor de troca, valor econômico.
Mas, paradoxalmente: Je mehr Werte er schafft, desto mehr Wertlosigkeit schafft er für sich selbst. (Quanto mais valores ele cria, tanto mais ausência de valor ele cria para si mesmo.)
Ou seja: O trabalhador cria valor (riqueza, mercadorias, capital acumulado). Mas ao mesmo tempo, ele perde valor enquanto ser humano, como sujeito.
Wertlosigkeit não significa apenas pobreza material — mas desvalorização ontológica e social. O trabalhador torna-se: Um ser sem valor social (substituível, descartável); Um ser sem reconhecimento (sem dignidade, sem direitos plenos); Um ser esvaziado da sua Gattungswesen (essência genérica humana). É uma forma de negação da subjetividade — o trabalhador cria o mundo (o sistema de valores do capital), mas é despossuído do valor de si mesmo.
Entwürdigung, etimologicamente o prefixo "Ent-" (negação, retirada) + "Würde" (dignidade) + sufixo "-ung" (formador de substantivo abstrato) = "Privação de dignidade", "desdignificação", "rebaixamento da dignidade humana".
Aqui Marx refere-se à perda da dignidade do trabalhador alienado. Ao ser reduzido a uma engrenagem do sistema produtivo, o trabalhador é esvaziado de sua condição humana plena, tornando-se um meio para o capital, e não um fim em si mesmo (reificação). Essa entwürdigung é parte do processo de desumanização do sujeito, que já não se reconhece naquilo que faz.
Unmenschlichkeit, etimologicamente o prefixo "Un-" (negação) + "Menschlichkeit" (humanidade, humanidade no sentido ético ou existencial) = "Desumanidade", "falta de humanidade", "condição não humana".
Nesse caso, Marx expressa o estágio mais extremo da alienação: o trabalhador não apenas perde sua dignidade, mas é tratado e se sente como algo não humano.
A Unmenschlichkeit aparece como o avesso da Gattungswesen (essência genérica do ser humano) — conceito-chave em Marx, segundo o qual o ser humano realiza sua essência por meio do trabalho livre e consciente. No capitalismo, esse trabalho é invertido: ele aliena o homem de sua essência e o transforma num ser estranho a si mesmo.
Contudo, há uma contradição profunda e produtiva nesse processo: o surgimento histórico da alienação capitalista coincide com o surgimento histórico da individualidade social.
Em outras palavras, embora o estranhamento implique uma perda, ela também gera — dialeticamente — as condições objetivas para sua superação.
O próprio processo histórico que despersonaliza e fragmenta o trabalhador, ao mesmo tempo, forja (possibilidade objetiva) a consciência de sua separação, ou seja, tende a criar o sujeito moderno como sujeito potencialmente crítico.
A alienação, portanto, não é apenas um obstáculo, mas uma etapa do desenvolvimento humano que, ao atingir seus limites históricos, pode engendrar as bases para sua própria negação.
O crescimento do estranhamento e da potência técnica sob o capital revela, em última instância, o caráter historicamente transitório dessa forma de organização da vida social.
A contradição entre as forças produtivas sociais — cada vez mais universais — e as relações sociais de produção capitalistas, que degradam o trabalhador singular, abre o horizonte para um tipo de subjetividade que pode - sob determinadas condições - reapropriar-se conscientemente de sua própria atividade, superando o estranhamento.
Assim, o estranhamento em Marx não é apenas uma denúncia, mas um conceito crítico-dialético, que revela ao mesmo tempo a perda e a possibilidade da reconciliação, a negatividade da auto-alienação e o germe de sua superação, inscrita na própria história.
Iremos dissecar na próxima postagem mais o sentido – problemático - dado por Marx à auto-transcendencia do estranhamento.






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