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As Metamorfoses do Estranhamento - Parte 1

  • Foto do escritor: Giovanni Alves
    Giovanni Alves
  • 24 de jun.
  • 6 min de leitura

Esta série de pequenos artigos investiga as transformações qualitativas do conceito de estranhamento (Entfremdung) no desenvolvimento da categoria de subsunção formal à subsunção real do trabalho ao capital no interior da crítica da economia política de Karl Marx.


Na perspectiva da crítica da economia política, defendemos que a passagem da subsunção formal à real não apenas consolidou o capital como sistema autossustentado, mas também alterou profundamente a natureza do estranhamento, que se complexificou sob as formas de reificação [Versachlichung], coisificação [Verdinglichung] e fetichismo [Fetischismus]. Este novo complexo categorial expressa a constituição de um mundo em que as relações sociais se apresentam não apenas como relações entre coisas (reificação) mas onde os sujeitos são defrontados pelas próprias coisas – objetivações que adquirem vida própria - e reduzidos a portadores funcionais da lógica do capital, na condição de sujeitos coisificados (personificação das coisas).


Karl Marx utiliza principalmente a expressão “personificação das coisas” [Personifizierung der Sachen ou Personifikation der Sachen] para descrever o fenômeno em que coisas (como o capital, o dinheiro ou a mercadoria) adquirem características subjetivas, como se tivessem vontade própria, agissem por si mesmas ou fossem sujeitos sociais. Mas em alguns contextos ele também se refere à personificação da coisa [die Personifikation der Sache] — por exemplo, o capitalista enquanto personificação do capital [Personifikation des Kapitals]. Nesses casos, trata-se do processo inverso: um sujeito humano passa a agir e existir socialmente apenas enquanto portador de uma lógica que lhe é estranha — a lógica da coisa capital.


Em síntese:

Personificação da coisa (o capitalista como personificação do capital). Um sujeito humano age como se fosse a coisa (ex: capitalista como personificação do capital). Diz Marx: “Der Kapitalist ist nur die Personifikation des Kapitals, aber nicht des Genusses desselben.“ (“O capitalista é apenas a personificação do capital, e não do seu gozo.”) — Marx, O Capital, Livro 1, Cap. 24.


Personificação das coisas (o capital aparecendo como sujeito): A coisa aparece como se fosse sujeito (ex: o capital “trabalha”, o dinheiro “produz”).): “Die Sachen haben menschlichen Charakter, die gesellschaftlichen Verhältnisse der Menschen erscheinen als Sachen.“ (“As coisas adquirem caráter hum/ano; as relações sociais entre os homens aparecem como relações entre coisas.”) — Marx, O Capital, Livro 1, Cap. 1


O desenvolvimento da categoria de subsunção do trabalho ao capital ocupa um lugar central na crítica da economia política de Karl Marx. A distinção entre subsunção formal e subsunção real não se limita a uma diferenciação técnico-produtiva, mas revela, em sua dimensão mais profunda, as metamorfoses históricas e ontológicas do próprio capital enquanto forma social totalizante.


O desenvolvimento da subsunção — da fase formal à real — não apenas consolidou o capital enquanto modo de produção social e sistema de controle do metabolismo social, como também promoveu uma transformação qualitativa das formas de estranhamento [Entfremdung]. Essa transformação histórica alterou radicalmente as mediações entre sujeitos, objetos e o mundo das coisas, levando à constituição de formas sociais fetichizadas e à emergência de uma sociabilidade fundada na coisificação generalizada, tal como se apresentou após a Segunda Guerra Mundial e o neocapitalismo e principalmente, na era do capitalismo global.


Na formulação de Marx, especialmente nos manuscritos reunidos em O Capital e nos Grundrisse, a subsunção do trabalho ao capital apresenta dois momentos fundamentais:

·                

A subsunção formal [formelle Subsumtion] na qual o capital se apropria de formas preexistentes de trabalho, subordinando-as juridicamente sem transformá-las substancialmente em termos técnicos e produtivos. O trabalhador já é um trabalhador livre, separado dos meios de produção e compelido à venda de sua força de trabalho.

·                

A subsunção real [reelle Subsumtion] que representa a transformação qualitativa do processo de trabalho. Aqui, o capital não apenas se apropria do trabalho, mas reorganiza a totalidade do processo produtivo, moldando suas bases materiais, científicas, tecnológicas e sociais segundo a lógica da valorização. É a era do modo de produção especificamente capitalista.


Marx define esse processo como o momento em que o capital passa a “desenvolver-se a partir de sua própria base material”, criando as condições que lhe são próprias e autonomizando-se como “sujeito automático” [automatisches Subjekt].


O conceito de estranhamento, tal como formulado nos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, emergiu no contexto em que Marx ainda não havia desenvolvido completamente sua crítica da economia política. Nesse estágio, o estranhamento é analisado fundamentalmente na forma como aparece sob a subsunção formal do trabalho ao capital. O trabalhador, separado (alienado) dos meios de produção, é compelido a vender sua força de trabalho, tornando-se estranho:


·Ao produto do trabalho, que se apresenta como algo exterior e hostil;

·Ao próprio ato de trabalhar, que aparece como coerção;

À sua própria essência humana, reduzida à mera função econômica;

·E aos outros trabalhadores, com os quais se relaciona apenas por mediações mercantis.


Aqui, o estranhamento assume a forma da reificação (Versachlichung): os sujeitos tornam-se coisas, e as relações sociais aparecem como relações entre objetos. O Marx de 1844 ainda não tinha uma teoria do capital e, portanto, tampouco uma teoria do estranhamento plenamente desenvolvida.


A transição para a subsunção real não elimina o estranhamento, mas o radicaliza e o reformula ontologicamente. Ao reorganizar não apenas o processo de trabalho, mas a totalidade das relações sociais, o capital subsume também:


·A ciência, que deixa de ser força produtiva genérica e passa a ser força produtiva do capital;

·A natureza, tratada como mero estoque de matéria-prima a ser apropriado;

·E a subjetividade, que se torna funcional à lógica da valorização.


A relação de estranhamento já não se estrutura prioritariamente como uma relação sujeito-objeto, mas como uma relação coisa-consigo-mesma, uma vez que o próprio sujeito foi dissolvido funcionalmente no sistema coisal do capital. A metamorfose do estranhamento sob a subsunção real exige distinguir três categorias fundamentais que fazem parte do complexo categorial do estranhamento:


 Reificação (Versachlichung)

Presente desde a subsunção formal, a reificação reduz o trabalhador a mero objeto, à força de trabalho vendida no mercado, mediada pelas formas mercantis.


Coisificação (Verdinglichung)

Na subsunção real, o processo se radicaliza: o trabalhador não é apenas reduzido à coisa, mas passa a ser personificação da coisa, operando como uma função do capital. O próprio capital se apresenta como sujeito, enquanto o trabalhador se dissolve na lógica do objeto que se autonomiza.


Fetichismo (Fetischismus)

O ápice desse processo é o fetichismo, em que não apenas as mercadorias, mas também o capital, o mercado, o dinheiro e a própria técnica aparecem como forças dotadas de vontade própria, enquanto os sujeitos humanos tornam-se meros suportes funcionais desse movimento.


Na subsunção real, o capital não apenas domina o processo produtivo, mas também subsume a própria produção do conhecimento, a organização da vida e a relação com a natureza. Ciência, tecnologia, natureza e subjetividade são convertidas em instrumentos da valorização, expressando o grau absoluto do estranhamento e da coisificação. Mas a teoria do estranhamento, na perspectiva exclusiva da crítica da economia política — como, por exemplo, nos teóricos da teoria do valor (Moishe Postone e outros) —, sintetiza essa condição ao afirmar que o capital se torna um “sujeito automático” que estrutura as práticas, os saberes e a própria percepção do mundo. Diante da subsunção real, não faz sentido, para tais autores, falar em estranhamento, uma vez que o sujeito estaria dissolvido na própria lógica do capital. Teríamos, então, o fetichismo do fetiche-mor: o capital.

 

Entretanto, isso não significa que o estranhamento não tenha se alterado em termos qualitativos. É a teoria do estranhamento que permite — juntamente com a teoria da práxis política — refletirmos sobre o fim do capitalismo como possibilidade histórica.O estranhamento não desaparece, mas se reformula como o próprio metabolismo social mediado pela coisa; a relação deixa de ser sujeito-objeto (S ≠ O) e passa a ser coisa-consigo-mesma (C = C), já que o sujeito está subsumido no objeto que se autonomiza. Portanto, longe de ser superado, o estranhamento assume uma forma superior, plenamente desenvolvida, expressando a lógica do fetichismo como fundamento da reprodução social no capitalismo tardio.


Entretanto, um detalhe importante: A relação coisa-consigo-mesma não é meramente

C = C. mas sim, Cp ∑ C,

onde:

Cp, coisa-pessoa

∑, identidade/não-identidade (se lê: somatório)

C, coisa


É verdade que o sujeito está subsumido no objeto que se autonomiza. Mas admitir tão-somente que o sujeito se coisificou e que C = C é fetichizar o fetiche e negar que, apesar de a forma mercadoria e o fetichismo se inscreverem nas dimensões vitais dos sujeitos — seu corpo e sua psique —, essa inscrição profunda implica que “os sujeitos se determinem permanentemente numa basculação dialética entre a coisa — a sua força de trabalho como mercadoria e o correspondente fetichismo — e a pessoa” (Silveira, Paulo. Teoria marxista da subjetividade, p. 74).


Portanto, o desenvolvimento da subsunção formal para a subsunção real representa não apenas a consolidação do capital enquanto sistema de controle do metabolismo social, mas também a transformação qualitativa do próprio fenômeno do estranhamento e a necessidade de elaboração — numa perspectiva ontológica — da teoria da práxis social e da teoria da personalidade.


[continua]


 
 
 

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