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"De olhos bem fechados", de Stanley Kubrick: Um ensaio crítico

  • Foto do escritor: Giovanni Alves
    Giovanni Alves
  • há 7 horas
  • 5 min de leitura
Tela de abertura do filme "De olhos bem fechados de Stanley Kubrick
Tela de abertura do filme "De olhos bem fechados de Stanley Kubrick

Espaço Tela Crítica



De Olhos Bem Fechados (1999), último filme de Stanley Kubrick, baseia-se no romance Breve Romance de Sonho (1926), de Arthur Schnitzler, ambientado na Viena do pós-Império Austro-Húngaro. Kubrick transfere o enredo para Nova Iorque de 1999, no auge do capitalismo global financeirizado, revelando a crise da subjetividade burguesa na modernidade tardia. Tanto Schnitzler como Kubrick captam a atmosfera trágica, ambivalente e fetichizada das relações humanas sob o domínio do capital financeiro — uma modernidade que combina persistências do Antigo Regime (década de 1920), expansão do fetichismo da mercadoria e profunda crise orgânica da ordem burguesa.


Schnitzler — médico, escritor e amigo de Freud — foi testemunha privilegiada da crise da modernidade vienense, marcada pela decadência dos valores tradicionais, pela ascensão das pulsões inconscientes e pela disseminação de relações sociais cada vez mais fetichizadas. A Viena de Schnitzler é um laboratório psicológico e social onde emergem subjetividades instáveis, ambíguas e reprimidas, reveladoras de tensões entre tradição e modernização capitalista. Como observou George Steiner, o século XX nasceu ali: espaço de ansiedade, colapso moral e incubadora do mal-estar civilizacional.


Kubrick reconhece nessa atmosfera uma matriz estrutural do século XX tardio. Assim como Schnitzler analisou a alma burguesa diante do declínio do Império, Kubrick analisa a subjetividade burguesa às portas do século XXI, numa Nova Iorque financeirizada, repleta de máscaras sociais, sexualidade fetichizada e instrumentalidade moral.


O filme é situado num período de dominância financeira global — momento de intensificação do fetichismo social, explosão do capital especulativo e proliferação de formas estranhadas de vida.


A crise orgânica do capital, que percorreu todo o século XX (1914–1945, 1945–1975, 1980–2008), culmina no capitalismo global financeirizado, descrito como etapa superior do capitalismo tardio. Nesse contexto, o fetichismo atinge seu ponto mais alto: não só mercadorias, mas também relações afetivas, identidades e fantasias tornam-se imagens-fetiches, liquefeitas e instrumentalizadas. Segundo François Chesnais, “o triunfo do fetichismo financeiro provoca um salto do fetichismo da mercadoria”, formando o pano de fundo para a trama. Kubrick estrutura o filme como a jornada de um indivíduo médio da classe média alta — o Dr. William Harford — perdido num mundo de aparências, simulações e valores voláteis.


O filme sustenta uma tese clara: há uma homologia estrutural entre a crise orgânica do capital e a crise da subjetividade burguesa.


O inconsciente — instância fundamental revelada por Freud — é moldado e intensificado pela lógica fetichizada da sociedade capitalista. A psicanálise, como observou Bakhtin, é uma projeção das relações objetivas sobre o psiquismo. Em Eyes Wide Shut, o estranhamento (Unheimliche) deixou de ser apenas psíquico: é social, histórico e econômico.


A classe média emerge como sujeito privilegiado dessa crise. Contraditória por natureza — simultaneamente subordinada e aspirante a ascender —, ela expressa de modo exemplar a instabilidade emocional e moral da sociedade fetichizada. Bill Harford encarna o “macho burguês” em crise: seguro de si, apoiado em convenções sociais e no poder-de-gênero, ele é repentinamente abalado pela afirmação do desejo feminino.


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O casal Harford vive à sombra da elite financeira representada por Victor Ziegler, burguês poderoso que contrata Bill como médico pessoal. O cotidiano da família — trabalhado por Kubrick ao som da valsa de Shostakovich — exibe uma dupla esfera: Bill é médico autônomo bem-sucedido; Alice, desempregada, cuida do lar e busca reorientar sua vida após perder o emprego numa galeria de arte. A pequena Helena é apresentada como criança imersa na cultura das mercadorias — bonecas, brinquedos e imaginário Barbie.


A cena inicial já anuncia a crise do poder patriarcal: Alice, ao se despir integralmente, desfaz a imagem da “madona burguesa” e se apresenta como sujeito do desejo.


No diálogo conjugal que constitui o núcleo do filme, Kubrick insere uma dialética:


Tese – O olhar de Alice

Alice - no País das Maravilhas, o sonho americano ? - confronta Bill com o fato de que ele não a reconhece como sujeito pleno de desejo. Irritada pela indiferença do marido e pela suposição tácita de que apenas os homens desejam, ela acusa-o de ser cego às próprias fantasias e às fantasias dela.


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Antítese – As factualidades de Bill

Bill confia cegamente nas convenções burguesas: acredita que amor, casamento e moralidade garantem fidelidade. Para ele, o desejo masculino é natural; o feminino, improvável ou inofensivo. Ao afirmar que “sabe como os homens são”, ele revela sua posição de gênero: o poder-do-desejo é prerrogativa masculina.


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Síntese – A Fantasia da Traição

Alice implode esse imaginário ao confessar uma intensa fantasia sexual com um jovem oficial da Marinha — fantasia que invadiu seu corpo e sua mente, inclusive durante o ato sexual com Bill. O gesto é devastador: libera o desejo reprimido feminino contra a possessividade masculina. A partir daí, Bill mergulha numa odisseia de estranhamento conduzida pela imagem-fetiche da traição imaginária: um adultério inexistente que, como o capital fictício, só existe enquanto especulação.


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A noite de Nova Iorque transforma-se no labirinto da subjetividade fetichizada:

  • Nick Nightingale, o músico proletário, introduz Bill ao ritual orgiástico.

  • Domino, a prostituta, o assedia; sua amiga revela depois que Domino é soropositiva.

  • Milich, o dono da loja Rainbow, revela o lado perverso da sociabilidade — instrumentaliza a própria filha.

  • Sandor Szavost, burguês decadente, expressa cinicamente a moral do fingimento.

  • Marion Nathanson, tomada por amor-fetiche, declara-se a Bill no leito de morte do pai.

  • O baile orgiástico — mascarado, ritualizado, voyeurístico — funciona como alegoria da sociabilidade burguesa pervertida, com máscaras que escondem identidades enquanto revelam a estrutura pornográfica do poder.


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Tudo é imagem, fetiche, simulação. Tudo é aparência sustentada por convenções hipócritas. O estranhamento de Bill — imagens em preto e branco, fantasias obsessivas — revela a experiência psíquica típica da modernidade tardia: aquilo que deveria permanecer oculto (desejo feminino, fragilidade masculina, poder financeiro obsceno) vem à luz de modo sinistro. As imagens dominam Bill tanto quanto a valorização fictícia domina o capital: especulação pura, sem lastro real.


Quando Alice sonha suas próprias orgias, rindo enquanto traía o marido em sonho, Kubrick cria uma simetria profunda: Bill vive a fantasia acordado e Alice vive a fantasia dormindo. Ambos os percursos são reversos um do outro, como reflexos distorcidos.


O filme articula erotismo e morte: O amor de Marion irrompe no leito de morte do pai; Domino enfrenta risco de AIDS. A mulher que salva Bill na orgia é encontrada morta no hospital. A sexualidade é sempre ameaça; desejo e morte se atravessam.


A sociedade burguesa aparece como uma comunidade de perversos sustentada por consentimentos espúrios. As máscaras do baile orgiástico simbolizam o uso sistemático do simulacro para manter a aparência de normalidade. Victor Ziegler, ao final, aproxima-se de Bill para “tranquilizá-lo”: tudo não passara de farsa, encenação, factualidade burguesa. O mundo, diz ele, é assim — e a vida continua.


Essa naturalização da miséria humana (“isso acontece o tempo todo”) é talvez o momento mais cru da crítica social de Kubrick.


No shopping, cercados pela profusão de mercadorias natalinas, Bill — fragilizado — pede certezas. Alice recusa certezas: sabe que a vida burguesa é instável, ambígua, desequilibrada. Mas afirma algo essencial: “O importante é que estamos acordados”. E conclui com um gesto afirmativo e desmistificador do poder masculino: “Precisamos trepar.”


O filme, então, fecha o círculo: se tudo foi sonho, fantasia e especulação, resta o corpo — o encontro possível, desigual, mas verdadeiro.


Como Freud afirmava, “não mandamos nem mesmo em nossa própria casa”. De Olhos Bem Fechados demonstra isso: a casa burguesa, o corpo burguês, a fantasia burguesa — tudo é palco de estranhamento, crise e fetichização.


A criança é preparada para a continuidade da ordem (Helena e a Barbie). O casamento é mantido pelo fingimento. O desejo é reprimido ou mascarado. O capital organiza até a intimidade. Kubrick transforma a história de Schnitzler numa anatomia da modernidade financeirizada: um mundo de máscaras, rituais, fetiches e hipocrisias onde os indivíduos caminham “de olhos bem fechados”, conduzidos por imagens que não compreendem.

 
 
 

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