"De olhos bem fechados", de Stanley Kubrick: Um ensaio crítico
- Giovanni Alves

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De Olhos Bem Fechados (1999), último filme de Stanley Kubrick, baseia-se no romance Breve Romance de Sonho (1926), de Arthur Schnitzler, ambientado na Viena do pós-Império Austro-Húngaro. Kubrick transfere o enredo para Nova Iorque de 1999, no auge do capitalismo global financeirizado, revelando a crise da subjetividade burguesa na modernidade tardia. Tanto Schnitzler como Kubrick captam a atmosfera trágica, ambivalente e fetichizada das relações humanas sob o domínio do capital financeiro — uma modernidade que combina persistências do Antigo Regime (década de 1920), expansão do fetichismo da mercadoria e profunda crise orgânica da ordem burguesa.
Schnitzler — médico, escritor e amigo de Freud — foi testemunha privilegiada da crise da modernidade vienense, marcada pela decadência dos valores tradicionais, pela ascensão das pulsões inconscientes e pela disseminação de relações sociais cada vez mais fetichizadas. A Viena de Schnitzler é um laboratório psicológico e social onde emergem subjetividades instáveis, ambíguas e reprimidas, reveladoras de tensões entre tradição e modernização capitalista. Como observou George Steiner, o século XX nasceu ali: espaço de ansiedade, colapso moral e incubadora do mal-estar civilizacional.
Kubrick reconhece nessa atmosfera uma matriz estrutural do século XX tardio. Assim como Schnitzler analisou a alma burguesa diante do declínio do Império, Kubrick analisa a subjetividade burguesa às portas do século XXI, numa Nova Iorque financeirizada, repleta de máscaras sociais, sexualidade fetichizada e instrumentalidade moral.
O filme é situado num período de dominância financeira global — momento de intensificação do fetichismo social, explosão do capital especulativo e proliferação de formas estranhadas de vida.
A crise orgânica do capital, que percorreu todo o século XX (1914–1945, 1945–1975, 1980–2008), culmina no capitalismo global financeirizado, descrito como etapa superior do capitalismo tardio. Nesse contexto, o fetichismo atinge seu ponto mais alto: não só mercadorias, mas também relações afetivas, identidades e fantasias tornam-se imagens-fetiches, liquefeitas e instrumentalizadas. Segundo François Chesnais, “o triunfo do fetichismo financeiro provoca um salto do fetichismo da mercadoria”, formando o pano de fundo para a trama. Kubrick estrutura o filme como a jornada de um indivíduo médio da classe média alta — o Dr. William Harford — perdido num mundo de aparências, simulações e valores voláteis.
O filme sustenta uma tese clara: há uma homologia estrutural entre a crise orgânica do capital e a crise da subjetividade burguesa.
O inconsciente — instância fundamental revelada por Freud — é moldado e intensificado pela lógica fetichizada da sociedade capitalista. A psicanálise, como observou Bakhtin, é uma projeção das relações objetivas sobre o psiquismo. Em Eyes Wide Shut, o estranhamento (Unheimliche) deixou de ser apenas psíquico: é social, histórico e econômico.
A classe média emerge como sujeito privilegiado dessa crise. Contraditória por natureza — simultaneamente subordinada e aspirante a ascender —, ela expressa de modo exemplar a instabilidade emocional e moral da sociedade fetichizada. Bill Harford encarna o “macho burguês” em crise: seguro de si, apoiado em convenções sociais e no poder-de-gênero, ele é repentinamente abalado pela afirmação do desejo feminino.

O casal Harford vive à sombra da elite financeira representada por Victor Ziegler, burguês poderoso que contrata Bill como médico pessoal. O cotidiano da família — trabalhado por Kubrick ao som da valsa de Shostakovich — exibe uma dupla esfera: Bill é médico autônomo bem-sucedido; Alice, desempregada, cuida do lar e busca reorientar sua vida após perder o emprego numa galeria de arte. A pequena Helena é apresentada como criança imersa na cultura das mercadorias — bonecas, brinquedos e imaginário Barbie.
A cena inicial já anuncia a crise do poder patriarcal: Alice, ao se despir integralmente, desfaz a imagem da “madona burguesa” e se apresenta como sujeito do desejo.
No diálogo conjugal que constitui o núcleo do filme, Kubrick insere uma dialética:
Tese – O olhar de Alice
Alice - no País das Maravilhas, o sonho americano ? - confronta Bill com o fato de que ele não a reconhece como sujeito pleno de desejo. Irritada pela indiferença do marido e pela suposição tácita de que apenas os homens desejam, ela acusa-o de ser cego às próprias fantasias e às fantasias dela.

Antítese – As factualidades de Bill
Bill confia cegamente nas convenções burguesas: acredita que amor, casamento e moralidade garantem fidelidade. Para ele, o desejo masculino é natural; o feminino, improvável ou inofensivo. Ao afirmar que “sabe como os homens são”, ele revela sua posição de gênero: o poder-do-desejo é prerrogativa masculina.
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Síntese – A Fantasia da Traição
Alice implode esse imaginário ao confessar uma intensa fantasia sexual com um jovem oficial da Marinha — fantasia que invadiu seu corpo e sua mente, inclusive durante o ato sexual com Bill. O gesto é devastador: libera o desejo reprimido feminino contra a possessividade masculina. A partir daí, Bill mergulha numa odisseia de estranhamento conduzida pela imagem-fetiche da traição imaginária: um adultério inexistente que, como o capital fictício, só existe enquanto especulação.

A noite de Nova Iorque transforma-se no labirinto da subjetividade fetichizada:
Nick Nightingale, o músico proletário, introduz Bill ao ritual orgiástico.
Domino, a prostituta, o assedia; sua amiga revela depois que Domino é soropositiva.
Milich, o dono da loja Rainbow, revela o lado perverso da sociabilidade — instrumentaliza a própria filha.
Sandor Szavost, burguês decadente, expressa cinicamente a moral do fingimento.
Marion Nathanson, tomada por amor-fetiche, declara-se a Bill no leito de morte do pai.
O baile orgiástico — mascarado, ritualizado, voyeurístico — funciona como alegoria da sociabilidade burguesa pervertida, com máscaras que escondem identidades enquanto revelam a estrutura pornográfica do poder.

Tudo é imagem, fetiche, simulação. Tudo é aparência sustentada por convenções hipócritas. O estranhamento de Bill — imagens em preto e branco, fantasias obsessivas — revela a experiência psíquica típica da modernidade tardia: aquilo que deveria permanecer oculto (desejo feminino, fragilidade masculina, poder financeiro obsceno) vem à luz de modo sinistro. As imagens dominam Bill tanto quanto a valorização fictícia domina o capital: especulação pura, sem lastro real.
Quando Alice sonha suas próprias orgias, rindo enquanto traía o marido em sonho, Kubrick cria uma simetria profunda: Bill vive a fantasia acordado e Alice vive a fantasia dormindo. Ambos os percursos são reversos um do outro, como reflexos distorcidos.
O filme articula erotismo e morte: O amor de Marion irrompe no leito de morte do pai; Domino enfrenta risco de AIDS. A mulher que salva Bill na orgia é encontrada morta no hospital. A sexualidade é sempre ameaça; desejo e morte se atravessam.
A sociedade burguesa aparece como uma comunidade de perversos sustentada por consentimentos espúrios. As máscaras do baile orgiástico simbolizam o uso sistemático do simulacro para manter a aparência de normalidade. Victor Ziegler, ao final, aproxima-se de Bill para “tranquilizá-lo”: tudo não passara de farsa, encenação, factualidade burguesa. O mundo, diz ele, é assim — e a vida continua.
Essa naturalização da miséria humana (“isso acontece o tempo todo”) é talvez o momento mais cru da crítica social de Kubrick.
No shopping, cercados pela profusão de mercadorias natalinas, Bill — fragilizado — pede certezas. Alice recusa certezas: sabe que a vida burguesa é instável, ambígua, desequilibrada. Mas afirma algo essencial: “O importante é que estamos acordados”. E conclui com um gesto afirmativo e desmistificador do poder masculino: “Precisamos trepar.”
O filme, então, fecha o círculo: se tudo foi sonho, fantasia e especulação, resta o corpo — o encontro possível, desigual, mas verdadeiro.
Como Freud afirmava, “não mandamos nem mesmo em nossa própria casa”. De Olhos Bem Fechados demonstra isso: a casa burguesa, o corpo burguês, a fantasia burguesa — tudo é palco de estranhamento, crise e fetichização.
A criança é preparada para a continuidade da ordem (Helena e a Barbie). O casamento é mantido pelo fingimento. O desejo é reprimido ou mascarado. O capital organiza até a intimidade. Kubrick transforma a história de Schnitzler numa anatomia da modernidade financeirizada: um mundo de máscaras, rituais, fetiches e hipocrisias onde os indivíduos caminham “de olhos bem fechados”, conduzidos por imagens que não compreendem.






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