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O conceito de trabalho uberizado: Nota metodológica 2




Nesta série de postagens temos procurado caracterizar o que veio a ser denominado trabalho “uberizado”, isto é, o trabalho com aplicativos. Na postagem anterior procuramos caracterizar as formas de trabalho e nesta postagem vamos começar a caracterizar o que entendemos por trabalho "uberizado".


 O trabalho uberizado é trabalho "por conta própria" ou trabalho capitalista? Eis a questão.


Em primeiro lugar, a caracterização do trabalho "uberizado" implica num primeiro momento, o trabalho “por conta própria” – isto é, o trabalhador "uberizado" é dono dos meios de produção e não possui tipicamente vinculo de emprego com o capitalista (o proprietário do aplicativo) que se utiliza de seu trabalho.


Iremos fazer a caracterização do trabalho "uberizado" como sendo trabalho capitalista. Mas não se trata de trabalho capitalista típico, mas sim trabalho capitalista excêntrico.


É importante dissecar a natureza do excentrismo do trabalho uberizado.


Primeiro, vamos tratar de dois elementos fundamentais que estão implicados - de modo paradoxal - na relação de “uberização” (o fato do trabalho “por conta própria” e o fato da utilização do aplicativo).


A falta de qualquer destes elementos – ser “por conta própria” e utilizar aplicativo – impede que possamos caracterizar o trabalho como sendo uberizado.


O trabalho “uberizado” é o trabalho capitalista “por conta própria” que utiliza aplicativo – é assim, a forma 4 de trabalho que caracterizamos na postagem anterior.


O trabalho “uberizado” é uma forma de trabalho capitalista com o “anexo” modo “por conta própria” e a “intrusão” do aplicativo.


Temos que esclarecer o que significam os termos “anexo” e “intrusão” para definir os dois elementos fundamentais que compõem a “uberização” do trabalho: ser “por conta própria” e utilizar aplicativo.


Não se trata de preciosismo vocabular, mas forma conceitual de tentar apreender uma forma de trabalho excêntrica, paradoxal, que não se reduz a ser o típico “trabalho assalariado” tal como nós o conhecemos.


 Reiteremos: o trabalho “uberizado” não é o trabalho “por conta própria” com aplicativo, mas sim, o trabalho capitalista com o “anexo” da relação de trabalho “por conta própria” com o aplicativo servindo de “ligação” – ou “intrusão” - entre as duas formas de trabalho (a capitalista propriamente dita e a “por conta própria”).


Vejamos o significado das expressões que utilizamos para entender o excentrismo do trabalho capitalista “uberizado”:


"Anexo" é um termo que pode ser usado tanto como adjetivo quanto como substantivo, e tem origem no latim "annexus", que significa "ligado" ou "unido". Como adjetivo, "anexo" se refere a algo que foi acrescentado ou incorporado a outra coisa. Por exemplo, a forma de trabalho “por conta própria” foi ligada à forma de trabalho capitalista tal como por exemplo, um "documento anexo", onde o termo "anexo" está descrevendo o documento como algo que foi acrescentado a algo principal.


"Intrusão" é um termo que tem origem no latim "intrusio", que significa "forçar" ou "empurrar"¹. A definição que se aproximam do que queremos dizer que o aplicativo é um modo de intrusão na relação de trabalho uberizado é a que considera a intrusão um ato de introduzir-se (com astúcia ou violência).


No caso do motorista “uberizado” por exemplo, não foi o taxista (o trabalho “por conta própria”) que se tornou “uberizado” por meio do uso do aplicativo, mas sim o aplicativo que criou – ao introjetar-se na forma de trabalho - a forma “uberizada” como modo derivado da forma capitalista.


O trabalho assalariado que usa aplicativo não é trabalho uberizado (por exemplo, um motorista assalariado de uma empresa de taxis). Entretanto, o motorista que trabalha por conta própria – ele é o proprietário do instrumento de produção – ao inscrever-se no aplicativo,  ele – o ser do aplicativo – se introjeta na forma de trabalho e dá origem à forma “uberizada”.


Para além da forma do trabalho “por conta própria”, trata-se – de fato – do trabalho capitalista sob a forma excêntrica (trabalho capitalista com anexo do “por conta Perópria” e com a intrusão do aplicativo).


O trabalho “uberizado” é a forma capitalista “excêntrica” – o que Ruy Fausto denominaria forma capitalista “afetada de negação” pois in-corpora à “exploração” capitalista nos serviços, o modo “por conta própria” (atentem-se para o uso de aspas nas palavras !).

 

O trabalho uberizado – tal como conceituamos aqui - refuncionaliza a forma 3 (a forma capitalista) introduzindo elementos da forma 2 (a forma trabalho "por conta própria" onde o sujeito que trabalha é proprietário e tem a posse dos meios de produção. Mas, nota bene, – o sujeito que trabalha não é proprietário do aplicativo - eis a ligação com a forma capitalista!).


O aplicativo é o elemento da produção - ao lado do veículo e do smartphone - que opera o controle/subordinação do trabalho [por conta própria] pelo capital). Nesse caso, com o aplicativo, a forma 2 (o trabalho “por conta própria”) se dissolve na forma 3 (o trabalho capitalista) – ela torna-se apenas a aparência que se impõe ideologicamente sob a forma da ideologia do empreendedorismo.


Foi a forma tecnológica do aplicativo (e-hailing) que permitiu o novo “excentrismo” capitalista: a "uberização" do trabalho. Não existiria trabalho uberizado sem a inovação tecnológica do e-hailing e do capitalismo informacional e de plataforma.


O trabalho "uberizado" é – acima de tudo – a forma suprema de trabalho mediado pela tecnologia. Diríamos mais: é a expressão da fusão “forma social-forma tecnológica” onde a segunda - o fetiche tecnológico - oculta brilhantemente a forma social (a produção do capital), implicando para isso, o modo “por conta própria”.


O trabalho uberizado é uma forma capitalista excêntrica. Por isso não é adequado analisa-la tão-somente utilizando as categorias clássicas de O Capítal. Torna-se necessário um esforço dialético para irmos além da reflexão marxiana clássica.


No passado, o capitalismo operou no Brasil, por exemplo - outras formas “excêntricas” como o escravismo colonial onde a forma do trabalho escravo sendo utilizada para produzir mercadorias para o mercado mundial (escravos não eram trabalhadores livres, embora compusessem a força de trabalho inserida no circuito da circulação do capital dominante no mercado mundial – talvez do mesmo modo que trabalhadores “uberizados” não são trabalhadores assalariados, embora  possam compor o trabalhador coletivo do circuito da circulação do capital global – que iremos tratar de modo mais preciso adiante).

 

O desenvolvimento do modo de produção capitalista e da produção do capital constituiu um complexo de formas de trabalho localizados no centro e na periferia do sistema - ou ainda - na borda-limite (o claro-escuro onde se localiza o trabalho "uberizado") onde podemos encontrar – subordinados à lei do valor – por exemplo, o trabalho artesanal ou o trabalho “por conta própria”, e inclusive, o trabalho público, formas de trabalho in-corporadas à lógica expansiva do capital, mas que preservam contraditoriamente características de trabalho não-capitalista propriamente dito.


Estar subordinado à lei do valor não significa necessariamente estar subsumido à lei da valorização do capital (reprodução ampliada do capital) - como é o caso por exemplo, do trabalho artesanal ou trabalho “por conta própria” e inclusive do trabalho público - sob a formação social capitalista. Produzir valor (valor de troca ou mercadoria) como o trabalho do produtor independente de mercadoria, não significa produzir mais-valor (o valor que é apropriado pelo capitalista).


Entretanto, a lei do valor opera nesse caso, na determinação do valor do trabalho – incluindo o valor da força de trabalho – oferecido no mercado. Mesmo não recebendo salário propriamente dito, o produtor independente de mercadoria sob a formação social capitalista - que aufere renda pessoal - tem na lei do salário (ou a lei do valor da força de trabalho) que vigora na formação social capitalista,  a referência para compor um dos elementos do custo de sua produção. Nenhum trabalhador - assalariado ou não - escapa à lei do salário numa formação capitalista.


O setor da economia capitalista onde se dissemina o trabalho “uberizado” é o setor de serviços. Na verdade, as economias capitalistas do século XXI tendem a serem economias de serviço cujo setor onde se dissemina o trabalho uberizado é denominado “economia de bicos” (gig economy). Ela é manifestação da crise do emprego e do vigor da ideologia do empreendedorismo que caracterizam a era da crise estrutural do capital.


No tempo histórico do capitalismo terminal, as formas clássicas que sustentam a produção do capital estão “afetadas de negação”, sendo o trabalho capitalista excêntrico da “uberização” uma de suas expressões dominantes.


Depois de caracterizarmos a forma do trabalho “uberizado”, é interessante expormos - nesta e nas postagens seguintes - os elementos de sua morfologia social.


Em primeiro lugar, o trabalho “uberizado” se caracteriza por ser uma atividade individual – diferentemente por exemplo, do emprego numa fábrica ou escritório onde a atividade de produção ocorre numa linha de montagem ou equipe de trabalho. A forma capitalista “uberizada” de trabalho aboliu o local de trabalho propriamente dito. Na verdade, o local de trabalho não desapareceu, mas foi desterritorializado.


Na medida em que a relação de trabalho “uberizado” é individualizada, evita-se a formação de identidade coletiva entre trabalhadores “uberizados”. Como salientamos acima, não existe um espaço do trabalho uberizado tal como por exemplo um local de trabalho de uma fábrica ou escritório, um território onde se pudesse constituir o em-si da consciência de classe.


Entretanto, a situação material do trabalho "uberizado" pode ser alterada - ou negada - caso os trabalhadores – por exemplo - se organizem numa cooperativa de trabalho de aplicativo sob o controle dos trabalhadores (o que demonstra que - a rigor - não é a forma tecnologia que determina a fragmentação da classe, mas sim, as relações sociais de produção capitalista - a forma da propriedade social e o modo de apropriação dos frutos do trabalho.

 

As relações sociais de produção determinam as relações de trabalho. O trabalho “uberizado” é uma forma excêntrica de trabalho capitalista, o que significa que é uma forma de trabalho das relações sociais de produção capitalista.


Lembremos: o trabalho “uberizado” é uma forma do trabalho capitalista que “incorpora” o aplicativo – posto enquanto elemento intrusivo - e adota o modo “por conta própria” como anexo. Foi o que destacamos acima.


O modo “por conta própria” significa que o sujeito que trabalha é proprietário e tem a posse dos meios de produção – menos de um: o aplicativo.


O aplicativo – exterioridade tecnológica intrusiva fornecida pela corporação capitalista – opera a “exploração” ou a espoliação do trabalhador “uberizado”. Assim, o aplicativo é o verdadeiro meio de produção alienado do sujeito que trabalha (ele funciona como sendo simulacro do “capital constante”, capital fixo que defronta o trabalhador como maquinaria algorítmica).


Portanto, o aplicativo - em si e para si - acusa que o trabalho “uberizado” é verdadeiramente trabalho capitalista e não trabalho “por conta própria”.


 O sujeito que trabalha "uberizado" não é a rigor, trabalhador assalariado. Este é um ponto muito importante pois diz respeito ao entendimento do que é o salário e do que é a subordinação/subsunção formal do trabalho ao capital - o que iremos ver na postagem seguinte.


Conceitualmente, trabalhador assalariado é o trabalhador livre , o trabalhador despossuído dos meios de produção; o proletário que vende exclusivamente sua força de trabalho como mercadoria.


O trabalhador "uberizado" não vende a sua força de trabalho. No caso do motorista de aplicativo, por exemplo, ele presta um serviço de transporte individual (mercadoria) utilizando para isso, um aplicativo – que é não de sua propriedade - por meio de um smartphone e de um veículo de sua propriedade.  Ao invés de vender a sua força de trabalho, ele vende o trabalho (o serviço de transporte individual).


Ele poderia se considerar um trabalhador "autônomo" - o que acontece com frequência, inclusive com apoio do Estado capitalista. Não existe vínculo de emprego e relação de subalternidade - diz o capital. Entretanto, oculta-se que as relações sociais de produção capitalistas são introduzidas sub-repticiamente pelo “aplicativo” que funciona como elemento intrusivo (o aplicativo é meio de produção da corporação capitalista Uber – no caso do trabalho dos motoristas de aplicativo).


Apesar de considerar o trabalho "uberizado" como trabalho capitalista, não podemos “aplicar” as categorias clássicas do processo de valorização expostas por Marx no Capital. No caso do trabalho capitalista excêntrico, tais categorias clássicas de O Capital são simulacros[1].


Por exemplo, o aplicativo da Uber funciona como “trabalho morto”, simulacro do “capital constante” cuja função é controlar/subordinar o labor dos motoristas de aplicativo – embora a rigor, não exista nesta relação social de produção capitalista, tipicamente, capital constante e capital variável. Muito menos, a rigor, jornada de trabalho e salário. Na verdade, existem e não existem (salve a dialética!) – na medida em que a substância do trabalho "uberizado" ou melhor, o modo como o capital organiza a produção, é radicalmente diferente da forma clássica analisada por Marx (mesmo que Marx tenha escrito sobre o salário por peça, não nos esqueçamos - aquilo diz respeito à forma-emprego clássica e ao trabalho assalariado propriamente dito).


O modo de “trabalho por conta própria” anexo ao trabalho "uberizado" opera – por um lado - a dominação ideológica (ideologia do empreendedorismo), e por outro lado, opera a transferência da responsabilidade pela atividade laboral - organizada de forma capitalista (excêntrica) - para os trabalhadores “uberizados”: os sujeitos absorvem os riscos objetivos e subjetivos do labor “uberizado”. A dessubjetivação de classe leva à re-subjetivação individualista que conduz à culpabilização das vítimas. É o reino da barbárie social descrita por Ana Celeste Casulo no seu livro.


Por outro lado, o modo de “trabalho por conta própria” anexo do trabalho "uberizado" , configura o rendimento laboral como renda pessoal – própria das formas de trabalho “por conta própria”. Entretanto, esta é mais uma farsa do capitalismo de plataformas. Aquilo que aparece como renda pessoal é - no caso do trabalho "uberizado" - o nível da aparência que confunde (e ofusca) a relação de trabalho capitalista e seu caráter de subalternidade efetiva. Na verdade, a renda pessoal do trabalho "uberizado" é um tipo específico de renda com feição salarial (simulacro do “capital variável”) – embora não seja a rigor, “salário”.


É preciso investigar melhor a natureza dos rendimentos salariais “excêntricos” – são (e não são) salário (o que faremos na próxima postagem).


O capitalismo terminal implodiu as formas clássicas em que o capital organizava a sua produção: capital variável-capital constante, salário, jornada de trabalho, o local de trabalho...A renda pessoal com feição salarial do trabalho "uberizado" a rigor, não é salário propriamente dito. É e não é salário - é "salário" - e precisamos identificar a natureza excêntrica (ou paradoxal) disto. Trataremos disso na próxima postagem. , trata-se de “salário” (com aspas).


Novamente, caso as relações sociais de produção fossem outras – não a relação de produção capitalista onde parcelas do valor produzido são expropriadas pelo capitalista (a proprietária do aplicativo!) – mas caso houvesse – por exemplo - uma cooperativa de produção de motoristas de aplicativo, os aplicativos teriam outra função: seriam utilizados para redistribuir a renda total pelas partes dos cooperados de acordo com seu rendimento individual (talvez se pudesse adotar um valor mínimo a ser redistribuído para cada um de acordo com suas necessidades). Nesse caso, o modo “por conta própria” não teria a carga ideológica que tem no capitalismo,  contribuindo apenas para garantir o espaço de autonomia  próprio do trabalho “por conta própria” (nesse caso, a forma cooperativa de produção garantiria o espaço de autonomia dos produtores “por conta própria” ao mesmo tempo que fortalece o senso do trabalho coletivo tendo em vista a socialização do trabalho).

 

 

 


[1] Um simulacro é uma imitação ou representação de algo real. É uma cópia ou reprodução que se assemelha ao original, mas não possui a mesma substância ou essência.

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