top of page
Buscar

O conceito de dessubjetivação de classe

  • Foto do escritor: Giovanni Alves
    Giovanni Alves
  • 4 de out. de 2024
  • 10 min de leitura

Atualizado: 2 de nov. de 2024



No livro Dimensões da Precarização do Trabalho (Projeto Editorial Praxis, 2013), dediquei uma seção do capítulo 4, intitulado “O Novo Metabolismo Social do Trabalho e a Precarização do Homem-que-Trabalha”, à problemática da dessubjetivação de classe. Este conceito é fundamental para entendermos a consolidação da hegemonia do capital no século XXI. Foi a dessubjetivação de classe que produziu o sujeito neoliberal e possibilitou o Grande Transformismo da esquerda — e dos intelectuais marxistas — nas últimas décadas.


O termo “dessubjetivação” foi utilizado anteriormente por autores como Giorgio Agamben e Michel Foucault. O conceito se contrapõe à ideia de "subjetivação", que refere-se ao processo de constituição de um sujeito, ou seja, à formação da identidade, consciência e agência de uma pessoa ou grupo. A dessubjetivação, nesses autores, refere-se ao processo de esvaziamento ou desintegração da subjetividade individual ou coletiva, embora não a associem diretamente à perspectiva de classe[1].


Por exemplo, Foucault trata da subjetivação como o processo pelo qual as pessoas são moldadas como sujeitos através de práticas de poder e saber. A dessubjetivação, nesse contexto, seria o inverso — quando o sujeito perde ou é desfeito enquanto tal, seja por meio de mecanismos disciplinares ou práticas de controle social. Isso ocorre, por exemplo, quando os indivíduos são reduzidos a objetos de controle, desprovidos de autonomia e identidade própria. O idealismo de Foucault desmaterializa o processo de subjetivação/dessubjetivação, ao desvinculá-lo do metabolismo social de uma sociedade de classes, como a capitalista. Sem uma teoria crítica do capital, Foucault não compreende o sentido histórico-material do próprio poder.


Agamben desenvolve o conceito de dessubjetivação ao examinar a relação entre o indivíduo e o poder soberano. Ele argumenta que, sob certas condições de controle biopolítico, os indivíduos são reduzidos ao estado de “vida nua” (bare life), em que são dessubjetivados e passam a existir apenas como corpos passíveis de serem governados ou excluídos, sem agência política ou reconhecimento de direitos. Assim como em Foucault, a dessubjetivação em Agamben carece de materialidade de classe. Falta-lhe história e luta de classes. Os indivíduos estão subsumidos ao controle biopolítico de um ente anônimo e abstrato, que só pode ser compreendido à luz da crítica do capital. Essas abordagens perdem, portanto, o sentido histórico-material da operação da subjetivação/dessubjetivação, que precisa da adjetivação “de classe” se quisermos entender o sentido ideopolítico dessa operação ideológica nas condições históricas da crise estrutural do capital e da luta de classes.


No contexto da cultura de massa, o termo subjetivação/dessubjetivação tem sido utilizado de forma psicologista para descrever indivíduos dessubjetivados ao serem absorvidos por identidades coletivas pré-fabricadas, impostas por padrões de consumo ou pela mídia de massa. A dessubjetivação é vista como a perda ou fragmentação da identidade do ego, em que o sujeito é alienado de si mesmo, perdendo o sentido de unidade ou de agência pessoal. Esse entendimento, no entanto, desvincula a operação do sujeito psicológico da historicidade do ser social e do movimento da luta de classes, caindo em uma metafísica da subjetividade.

 

O que entendemos por “dessubjetivação de classe”?


A subjetivação é, de fato, o processo de constituição de um sujeito, ou seja, a formação da identidade, consciência e agência de uma pessoa ou grupo, que ocorre por meio de um processo concreto — social, histórico, político, ideológico e cultural. A categoria de classe social se forma por meio de processos políticos, ideológicos e culturais de subjetivação, denominados subjetivação de classe.


]A dimensão psicológica do processo está subordinada à dimensão social — e não o contrário.


Portanto, é necessário considerar as condições materiais objetivas que favorecem a formação da classe ou o processo de subjetivação de classe. Reiteremos: para existir uma classe social como sujeito histórico, é preciso haver processos de subjetivação de classe. A dessubjetivação de classe, por sua vez, refere-se ao esvaziamento ou desintegração da subjetividade coletiva da classe — em-si e para-si — em virtude de ofensivas históricas do capital nas esferas da produção, política, ideologia e cultura.


A dessubjetivação historicamente relevante é de classe, uma vez que o capital é o antípoda da classe proletária.


Portanto, ao utilizarmos o termo “dessubjetivação”, é essencial vinculá-lo à perspectiva da classe social do proletariado. O sujeito individual — o homem que trabalha — é, acima de tudo, uma individualidade pessoal de classe, cuja subjetivação (ou dessubjetivação) é produto de movimentos de reestruturação produtiva e de operações ideopolíticas e culturais operada pelo capital. Na verdade, o capital é - em si e para si - um processo de subjetivação/dessubejtivação alienado na medida em que ele diz respeito a uma relação social entre sujeitos humanos.


Um detalhe importante: a classe, enquanto sujeito histórico de mudança social, não se forma espontaneamente. Ela exige uma instituição ou organização social ou política — o “intelectual orgânico” (Gramsci) — capaz de promover o processo de subjetivação coletiva de classe, como o sindicato e, principalmente, o partido. Produz-se a classe educando o proletariado. Da mesma forma, desmonta-se a classe ao renunciar à educação dos proletários e à contra-ofensiva ideológica e política.


A dessubjetivação, portanto, refere-se à perda da identidade e da consciência de classe pela ausência de um “intelectual orgânico” capaz de resistir à ideologia do capital. Este é o ponto central, pois, a partir desse processo, estabeleceu-se o fundamento para a hegemonia do capital, como se observou na era do capitalismo neoliberal.


Dessa forma, a dessubjetivação pode ser interpretada como uma forma de alienação provocada pelo movimento do capital, com função primordialmente política.


Por exemplo, o capital dessubjetiva os indivíduos ao transformá-los em meros consumidores ou assalariados, esvaziando suas identidades e consciências de classe e reduzindo suas experiências de vida ao papel funcional que desempenham na máquina de produção. Quando o capital reduz o sujeito — o trabalho vivo — à função de força de trabalho enquanto mercadoria, ocorre uma forma de dessubjetivação. Trata-se da antessala para a incapacitação ou perda da identidade e da consciência de classe, abrindo caminho para a dominância neoliberal.


Assim, o conceito de dessubjetivação de classe é eminentemente político.


Por fim, estamos lidando com um processo histórico complexo: os processos de dessubjetivação de classe implicam dinâmicas sociais, políticas, ideológicas e culturais que levaram à dissolução dos “coletivos do trabalho”, impregnados pela memória pública da luta de classes.


A dessubjetivação de classe foi operada, entre outros fatores, pela ofensiva do capital na produção, por meio dos (1) intensos processos de reestruturação produtiva ocorridos nas grandes empresas capitalistas, especialmente a partir de meados da década de 1970.

 

Mas a dessubjetivação de classe também foi operada pela (2) ofensiva política do capital, evidenciada nas experiências históricas de derrotas sindicais e políticas da classe operária nos últimos trinta anos. Exemplos disso incluem as derrotas eleitorais que resultaram na eleição de Margaret Thatcher, no Reino Unido, em 1979, e de Ronald Reagan, nos EUA, em 1980; ou, na América Latina, os golpes militares das décadas de 1960 e 1970, como a derrubada do governo socialista de Salvador Allende no Chile, em 1973. No Brasil, a derrota eleitoral da Frente Brasil Popular em 1989 e a eleição de Fernando Collor de Mello, que implementou políticas neoliberais, são exemplos adicionais. Essas derrotas históricas da classe trabalhadora no processo de luta de classes resultaram em intensos processos sociais de dessubjetivação de classe

.

A dessubjetivação de classe também foi promovida no (3) plano ideológico, por meio da ofensiva do capital, que disseminou na vida social a ideologia do individualismo, desvalorizando práticas coletivistas e os ideais de solidariedade que sustentavam sindicatos e partidos trabalhistas. Ao mesmo tempo, como vimos mais recentemente, diante da solidão dos indivíduos reduzidos à sua particularidade, o capital ofereceu a ideologia do identitarismo, que substituiu a perspectiva de classe por identidades fragmentadas, como gênero, raça ou etnia, pelas quais os indivíduos poderiam se resubjetivar de forma alienada.


O individualismo e o identitarismo foram amplamente disseminados na cultura cotidiana, influenciada pela mídia, publicidade e o consumo, promovendo ideais de bem-estar individual, interesse pelo corpo e os valores individualistas de sucesso pessoal e riqueza.


A dessubjetivação de classe significou, por outro lado, a subjetivação neoliberal, baseada nos valores de mercado.


Trinta anos de capitalismo neoliberal impulsionaram a máquina de dessubjetivação de classe e, consequentemente, a subjetivação de mercado, fazendo com que os indivíduos abraçassem o fetichismo da mercadoria.


A dessubjetivação de classe corroeu os espaços públicos como campos de formação da consciência de classe contingente e necessária, eliminando, assim, a classe social como sujeito histórico em si e para si. O resultado foi a morte da política, hoje reduzida à “pequena política”, subsumida à hegemonia do capital neoliberal.


Nos locais de trabalho reestruturados, a dessubjetivação de classe gerou a individualização das relações de trabalho e a descoletivização das relações salariais. A crise do Direito do Trabalho, que se transforma em Direito Civil, exemplifica essa individualização e descoletivização das relações de trabalho na sociedade salarial.


Historicamente, a dessubjetivação de classe significou, no início da ofensiva do capital, o desmonte dos coletivos laborais, intrinsecamente ligado às dinâmicas de reestruturação do capital. O desmonte dos coletivos de trabalho formados por operários e empregados, que estavam vinculados ao ethos de solidariedade de classe, resultou na destruição da memória pública da organização e luta de classes. Os novos coletivos laborais, formados por jovens operários e empregados, tendem a adotar o ethos individualista que permeia a sociedade civil neoliberal. Essa nova geração, que entrou nos locais de trabalho ou que habita a sociedade civil neoliberal, é fruto da dessubjetivação de classe.


A ofensiva do capital, descrita ao longo de trinta anos de capitalismo neoliberal, operou a dessubjetivação de classe, produzindo o sujeito neoliberal descrito por autores como Pierre Dardot e Christian Laval, no livro A Nova Razão do Mundo (Boitempo Editorial, 2016), e Rubens Casara, em A Construção do Idiota (Da Vinci, 2024). No entanto, esses autores não enfatizam que a fabricação do sujeito neoliberal ou a construção do idiota é resultado da ofensiva reestruturativa, política e ideológica do capital, em curso há mais de trinta anos. A política, como instância de subjetivação/dessubjetivação, é negligenciada por eles.

 

A “dessubjetivação de classe” atingiu seu ápice com o colapso da esquerda comunista, socialista e trabalhista, que aderiu ao neoliberalismo (o PT no Brasil é um exemplo). A dessubjetivação de classe ocorreu, em parte, devido à ausência de um partido de classe capaz de operar uma contra-ofensiva ideológica e política. O partido da classe foi destruído pelo Grande Transformismo ocorrido na década de 1990, reforçando o desenvolvimento da reestruturação produtiva do capital e das políticas neoliberais que degradaram as condições de vida e trabalho dos assalariados.


Assim, por trás do sujeito neoliberal ou da sociedade de “idiotas” que habita a sociedade civil neoliberal, está a derrota política e ideológica do movimento operário, resultado da ofensiva do capital (Queda do Muro de Berlim, fim da URSS, o Grande Transformismo da esquerda comunista, socialista e trabalhista no Ocidente e dos intelectuais tradicionais e orgânicos anteriormente vinculados ao marxismo e à esquerda revolucionária). Esse é, portanto, o quadro da Grande Dessubjetivação de Classe que produziu a hegemonia neoliberal no Ocidente.


Outro aspecto importante a ser destacado é que o processo de dessubjetivação de classe é também fruto da destruição do passado. Como observou Eric Hobsbawm:


“A destruição do passado — ou melhor, dos mecanismos que vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas — é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século XX.”


A reestruturação capitalista, juntamente com a rendição do partido de classe no contexto da crise estrutural do capital, operou a destruição do passado (das lutas de classe), implodindo os loci de memória coletiva — coletivos sociais formados no decorrer das lutas de classes. Hobsbawm prossegue:


“Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem”.


Por isso, a luta contra o capital é também uma luta contra o esquecimento.


No capitalismo global, o coletivo de trabalho é reconstituído segundo o espírito do toyotismo, conforme descrevemos no livro Trabalho e Subjetividade (Boitempo Editorial, 2011). A dessubjetivação de classe foi o prelúdio da “captura” da subjetividade do trabalhador.


Para "capturar", foi preciso primeiro operar a dessubjetivação de classe, seguida pela subjetivação neoliberal, a partir da qual se formaram as equipes de trabalho, a adoção da remuneração flexível e a perseguição de metas de desempenho. Cada dispositivo organizacional da gestão toyotista carrega o sentido de dessubjetivação de classe.


A “captura” possibilita a manipulação do capital, ao promover continuamente a “quebra” da subjetividade de classe e o reforço de uma subjetividade alienada (ou subjetivação em desefetivação, na medida em que o capital esvazia a capacidade do sujeito, que se torna submisso aos valores-fetiche do capital). Isso visa cumprir os requisitos do novo produtivismo, promovendo a “redução” do trabalho vivo à mercadoria força de trabalho.


Por exemplo, a adoção da lean production ou “empresa enxuta” obscurece o “trabalhador social” no plano da consciência contingente de operários e empregados, por meio da reestruturação do “trabalhador coletivo” do capital. A fragmentação da classe trabalhadora, expressa na flexibilização dos laços contratuais, opera um processo de dessolidarização com impactos disruptivos na formação da consciência de classe contingente e necessária. A lógica da “redução de custos”, que afeta principalmente os recursos da força de trabalho, é, na verdade, uma forma de produção artificial da escassez com um significado simbólico: constranger e emular a força de trabalho.

 

Nas organizações, a adoção da remuneração flexível atrelada a metas faz com que o trabalhador assalariado se torne “carrasco de si mesmo”. A quebra da autoestima como ser humano e a “administração pelo medo” fragmentam a “personalidade autônoma” do trabalhador, reconstruindo-se uma individualidade pessoal mais suscetível às demandas sistêmicas do capital. A corrosão da “personalidade pessoal” leva à criação de “personalidades-simulacro”, tipos de personalidades mais particulares, imersas no individualismo de mercado. Esse é o resultado da dessubjetivação de classe, que possibilitou a “captura” da subjetividade e a plena manipulação pelo capital.


Desmontam-se os nexos sociometabólicos do sujeito coletivo de classe para que se possa reordenar as novas formas de consentimento espúrio nos locais de trabalho reestruturados. Isso é visível nas organizações do trabalho, mas a lógica da subjetivação neoliberal também permeia a sociedade civil, com os lúgubres resultados da teologia do identitarismo, que fratura o ser social.


Assim, a dessubjetivação de classe é o alfa e ômega do novo metabolismo social do capital, afetando o trabalho nas empresas reestruturadas e sendo o pressuposto essencial dos novos métodos de gestão baseados no “espírito do toyotismo” e afetando as relações sociais no plano da reprodução e da vida cotidiana. Esse processo produz o sociometabolismo da barbárie — uma categoria analítica fundamental para entender a era do capitalismo neoliberal.


--------------------------------


[1] O prefixo "des-" tem a função de indicar negação, reversão ou privação do significado original de uma palavra, introduzindo um sentido oposto ao do radical ao qual está associado. Em português, ele é utilizado para formar palavras que expressam a ideia de remoção, oposição, ausência ou cessação de algo. Portanto, eis as funções do prefixo "des-": (1). Negação ou oposição: O prefixo "des-" pode indicar a ausência ou a negação de uma condição ou estado. Exemplos: Desorganizado (que não está organizado) ou Desigual (que não é igual). (2). Reversão de uma ação: Muitas vezes, "des-" implica a inversão ou desfazimento de uma ação anterior. Exemplos:   Desfazer (fazer o contrário de fazer) ou Desmontar (reverter a ação de montar). (3). Privação ou perda: Em alguns casos, o prefixo sugere que algo foi retirado ou que há uma perda de algo que existia antes. Exemplos: Desempregado (privado de emprego) ou Desprovido (sem provisão, carente de algo). (4). Cessação ou interrupção: "Des-" pode também indicar o fim ou a interrupção de um processo ou estado. Exemplos: Desligar (interromper uma conexão ou operação) ou Desacelerar (reduzir a velocidade, interrompendo a aceleração.

 
 
 

1 comentario


Paulo Valdenor Queiroz
Paulo Valdenor Queiroz
29 oct 2024

Ótimas reflexões para pensar a organização dos aglomerados urbanos do capitalismo moderno

Me gusta
bottom of page