Desde o fim da URSS em 1991, o imperialismo estadunidense promoveu um amplo processo de reorganização do poder geopolítico e geoeconômico global que hoje se encontra desafiado pela Federação Russa e pela China. Na verdade, desde 2008 com a crise financeira global e a primeira grande depressão do capitalismo do século XXI, a política do "mundo unipolar" de Washington demonstrou não apenas sua falibilidade, mas a sua séria ameaça à paz e prosperidade entre os povos.
Apesar disso, os EUA não abandonaram o “Projeto para o novo século americano” - mesmo depois do fracasso na guerra no Iraque. Pelo contrário, a década de 2010 demonstrou que a estratégia visando a afirmação hegemônica global do imperialismo dos EUA e do seu complexo militar-industrial foi retomada com todo vigor. A maior expressão disso é a guerra comercial e tecnológica iniciada contra a China com Trump e Biden e a proxy war na Ucrania cona a Rússia (em 2022) visando controlar a Eurásia e desmontar a “Nova Rota da Seda”, ferramenta de construção hegeônica da China.
A catástrofe do “socialismo realmente existente” em 1991, com o fim da URSS, significou o impulso para a globalização neoliberal enquanto projeto de poder hegemônico geopolítico global. A partir daí difundiu-se a estratégia do mundo unipolar e a Doutrina do Choque neoliberal.
A ideologia da globalização neoliberal tornou-se a ideologia do Poder unipolar dos EUA-OTAN com derivações no plano ideopolitico. Nesse período acirrou-se a manipulação utilizando para isso, as novas ideologias do Império do globalismo. Foi impulsionado um “novo transformismo” político-ideológico no campo da esquerda socialista e comunista.
O poder da ideologia neoliberal americanista é insidioso na medida em que incorporou ideais caros do projeto civilizatório do Ocidente (liberdade, direitos humanos e democracia – por exemplo), tornando-os “armas ideológicas” da quarta geração de guerras: as guerras híbridas.
Desde o começo da década de 1990, com o fim da URSS, o projeto estratégico do poder imperialista estadunidense foi promover a Doutrina do Choque na Rússia e China. Temos que entender o neoliberalismo como sendo uma arma de guerra. O projeto estratégico do Poder Americano era fragmentar a Federação Russa (o que iniciou-se com Yeltsin e as Reformas neoliberais); e converter a China num polo capitalista (o que levaria à sua fragmentação na medida em que o capitalismo neoliberal seria incapaz de promover a coesão social necessária num país continental como a China sob demanda social crescente).
Ao mesmo tempo, no processo de reordenamento imperial dos EUA foi importante debilitar qualquer pretensão protagonista de poder paralelo ao dólar como moeda global. Foi o que aconteceu com a “sabotagem” da nova moeda (o Euro) a partir da crise de 2008, fazendo a União Européia adotar - de modo consensual - a política de austeridade neoliberal.
Aconteceu o mesmo com o Yen na crise da economia japonesa de 1987.
Assim, a estratégia de Poder Americano implica em “canibalizar” os aliados que tinham pretensão hegemônica. A guerra na Ucrânia confirma tal estratégia de “canibalização” na medida em que o custo geoeconômico (e geopolítico) de “demonização” da Rússia será bastante elevado em termos da economia européia. A economia industrial da Alemanha, a maior da União Européia, está sendo devastada pelo aumento do custo energético.
As finanças globais - sob o controle do FMI e do Banco Mundial; e o poder do dólar (o Fed e os bancos centrais aliados), tornaram-se elementos do complexo de “armas de guerra” dos EUA-OTAN.
Mas podemos destacar outras "armas de guerra” do poder do capital global sob hegemonia estadunidense.
1. O desenvolvimento da Internet e da New Economy na década de 1990. Propagou-se a ideologia da globalização neoliberal. Falou-se muito na época, do “fim da história” e, por conseguinte do fim da luta de classes, do Estado-nação e do imperialismo. Tais ícones conceituais permearam com força candente, o discurso e o imaginário social do Ocidente, principalmente das universidades no mundo todo. Depois do fim da URSS em 1991, comemorou-se o triunfo do poder unipolar (os EUA); e o dominio da vida social pelos interesses das corporações capitalistas e sua sintaxe ideo-política.
2. A partir de 2004, surgiu a ideologia do ESG (Enviromental Social Governance); ou as políticas de "meio-ambiente, responsabilidade social e governança", termo cunhado no auge do bolha financeira da década de 2000 numa publicação do “Pacto Global” em parceria com o Banco Mundial, chamada Who Cares Wins (o secretário da ONU, Kofi Annam tinha provocado 50 CEO´s de grandes instituições financeiras, sobre como integrar fatores sociais, ambientais e de governança no mercado de capitais. O fracasso das promessas da globalização neoliberal da década de 1990 e a crise do capitalismo global logo no começo da década de 2000, exigia naquela época, uma nova ofensiva ideológica do capital global capaz de dar resposta - no plano do imaginário social - às contradições sociais expostas pelo neoliberalismo.
3. A Agenda 2030 estabelecida em 2015 pela ONU, disseminada como sendo "o plano global para se atingir um mundo melhor". Mais uma vez, desenhado logo após a crise do capitalismo neoliberal (2008-2011), a Agenda 2030 da ONU estabelecia metas ousadas para políticas do Estado neoliberal impossiveis de serem efetivamente realizadas. Não se questionava as trocas desiguais do comércio global, o sistema financeiro internacional e as políticas neoliberais adotadas no mundo, responsáveis pela concentração de renda e desigualdade social (isto se trata efetivamente do "capitalismo como farsa", título do último capítulo do meu livro, "A condição de proletariedade", de 2007)..
4. Na década de 2010, ocorreu o florescimento do “capitalismo de plataformas” ou do “capitalismo das redes sociais”. Fortaleceu-se o poder das Big Techs (Apple, Amazon, Meta, Alphabet/Google), braços do complexo industrial do Vale do Silicio (e adjacências) - em instância, do complexo militar-industrial dos EUA.
De certo modo, a Internet e as redes sociais, tal como a indústria do cinema em Hollywood desde o fim da Segunda Guerra Mundial, tornaram-se ferramentas bastante adequada à nova era das “guerras híbridas” e da manipulação "de quarta geração". É o que explica o interesse em incentivar o uso dos smartphones, o novo gadget de consumo que permeia hoje a vida social.
O smartphone - a maior invenção da história do capitalismo depois da Televisão e da Internet - é o aparelho de comunicação e (des)informação de massa que nos acorrenta "com grilhões dourados" à estratégia de manipulação operada hoje numa dimensão inédita.
5. Com a pandemia de 2020 e a nova era dos adoecimentos, alçançaram o topo de honra do sistema do lucro, as Big Pharma (a indústria farmacêutica) que - ao lado das empresas do complexo militar-industrial estadunidense (impulsionadas pela guerra na Ucrânia em 2022); e das Big Techs que ascederam na década de 2010 - disputam o superlucro no mercado mundial.
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Foi a ascensão da Ásia oriental, principalmente da China na década de 2000, que fez acender o “sinal de alerta” no Departamento de Estado estadunidense.
Diferentemente do Japão e da Coréia do Sul, a China sob a direção do Partido Comunista chinês, não se incorporou no sistema de mercado sob a hegemonia dos EUA-OTAN. Pelo contrário, na década de 2000 demonstrou sua capacidade de superar economicamente os EUA no mercado mundial adotando um outro modelo de desenvolvimento alternativo ao Consenso de Washington.
O “espectro da total dominação”, termo utilizado por Moniz Bandeira (2016), tem na política do Choque neoliberal (ou Doutrina do Choque) seu elemento de “normalização” ideológica. Por exemplo, as políticas neoliberais do Consenso de Washington foram adotadas, não apenas na América Latina da década de 1990 (com o Chile tendo sido na década de 1979, o experimento ancestral); mas no Leste Europeu (incluindo na década de 1990, a Rússia de Yeltsin).
A Doutrina do Choque também foi adotada na União Europeia depois da crise de 2008 (as politicas de austeridade neoliberal sob o FMI e Banco Mundial, os operadores do Consenso de Washington).
A Doutrina do Choque neoliberal tem um alto poder de “normalização” no sentido de mobilizar o espírito de conformismo social enquanto expressão mental da crença de que “Não há Alternativa”.
István Mészáros percebeu que o poder da ideologia neoliberal em ascensão a partir de 1980, baseava-se na crença de que “Não há Alternativa”, Por isso em 1979, o filósofo húngaro decidiu estudar a filosofia de Jean-Paul Sartre. Disse ele: “Sartre foi um homem que sempre pregou que há uma alternativa, deve haver uma alternativa: como indivíduos devemos nos rebelar contra esse poder, esse monstruoso poder do capital”.
Portanto, no começo da era neoliberal, há mais de 40 anos, Mészáros salientou a necessidade da luta contra a “normalização” ideológica do poder monstruoso do capital.
A crise profunda da esquerda socialista e comunista a partir de 1989 (e aprofundada com o fim da URSS) contribuiu para o fortalecimento ideológico da Doutrina do Choque neoliberal.
Entretanto, a nova era do capital global iniciada em 1991, abriu novas contradições geopoliticas para o imperialismo estadunidense que se manifestaram a partir da década de 2000. A ascensão da China no mercado mundial e o protagonismo geopolitico da Federação Russa (com Vladimir Putin) significaram um desafio para a hegemonia dos EUA enquanto potência dirigente do imperialismo global.
Depois da crise capitalista global de 2008, o xadrez geopolítico do capital global sofreu profundas mudanças. Face a elas, o Império foi obrigado a reposicionar-se. A nova mobilização de recursos geopolíticos, geoeconômicos e ideológico-midiáticos à serviço do poder do dólar, configurou a necessidade do Choque permanente face à corrosão de poder dirigente dos EUA-OTAN.
Enquanto modo de produção, o capitalismo não funciona mais à altura das necessidades civilizatórias – pelo contrário, o fracasso do sistema do lucro é flagrante no mundo do todo. Face a esta terrível realidade para o capital, só resta exercer (e exarcebar) o poder da Ideologia enquanto manipulação.
A Segunda Guerra Fria é a Guerra Total face a expansão geoeconomia e geopolítica do “inimigo interno” (a Rússia capitalista) e o polo antitético (a China do Anti-Valor).
A pandemia de 2020 e a guerra na Ucrânia representam hoje uma nova oportunidade histórica, similar àquela que ocorreu com o fim da URSS em 1991, visando dar um “reset” no poder do capital global.
O primeiro “reset” foi a ascensão hegemônica do neoliberalismo e da globalização neoliberal. Ele foi a resposta sistêmica à crise estrutural do capital iniciada na última metade da década de 1960 e que foi até a década de 1970. A profunda reestruturação capitalista e reorganização do imperialismo norte-americano a partir dos anos 1980 deram inicio à temporalidade histórica neoliberal.
De 1989-2009 tivemos vinte anos de reerguimento do poder do capital global sob a hegemonia dos EUA/OTAN.
Entretanto, com o aprofundamento da crise estrutural do capital em 2009, devido o crash financeiro, um dos mais profundos desde 1929, o capitalismo global enfrentou sua primeira crise sistêmica na década de 2010. Esta é a “terceira longa depressão” da economia capitalista caracterizada por crescimentos insustentáveis, desacelerações e recessão.
Embora a hegemonia neoliberal não tenha sido ameaçada, o neoliberalismo não conseguiu mais sustentar-se por si só. Acumulam-se contradições sociais e políticas tendo em vista a financeirização da riqueza capitalista, a concentração de renda e crescimento da desigualdade social no países capitalistas centrais.
Por exemplo, em 2023, a Oxfam noticiou que bilionários concentraram perto da metade de toda a riqueza social produzida globalmente. O 1% mais rico ficou com quase 2/3 de toda riqueza produzida desde 2020, seis vezes mais que 90% da população global conseguiu no período. Pela primeira vez em 30 anos, riqueza e pobreza extremas cresceram ao mesmo tempo: “No Brasil há 284 bilionários, segundo lista da Forbes de 2022. O 1% mais rico do Brasil tem quse metade da riqueza do país, segundo o Credit Suisse. As 3.390 pessoas mais ricas do país detêm 16% de toda riqueza do Brasil, mais que 182 milhões de brasileiros.” Isto não foi resultado da pandemia, como sugere a reportagem, mas sim, do triunfo do neoliberalismo desde 1990. Tenta-se ocultar as verdadeiras causas da concentração de riqueza mundial numa dimensão nunca antes vista na história. Eles sugerem como saída a “taxação dos ricos”, ao invés da abolição do neoliberalismo e suas políticas do “desastre social”.
Ao mesmo tempo, a crise do imperialismo dos EUA se manifesta pelo fracasso no Iraque e Afeganistão e pela guerra na Ucrânia. Hoje, Rússia e China desafiam o poder unipolar do Império estadunidense. Mas os desafios geopolíticos do núcleo orgânico do poder do capital global (EUA), somam-se à sua profunda crise social e política.
A crise da democracia liberal e a ascensão da extrema-direita; o aumento da pobreza e da desigualdades social; a crises sanitária e a pandemia do novo coronavírus no cenário do envelhecimento global; a mudança climática no planeta e seus impactos nas populações; a decadência econômica dos EUA face a ascensão da economia da China e da Ásia oriental ameaçando o poder do dólar - eis a nova etapa da crise estrutural do capital numa dimensão superior àquela da de fins da década de 1960 e começo da década de 1970.
É por isso que se coloca a necessidade - no plano da manipulação ideológica e da ação política (e geopolítica) - do novo “reset” do capitalismo neoliberal face a crise estrutural de civilização do capital. É isto que explica o elevado patamar de manipulação ideológica que oscila por um lado, entre os delírios de analistas neoliberais que acalmam o público com saídas inócuas para a profunda crise do sistema neoliberal (por exemplo, a proliferação no discurso ideológico da Agenda ESG e da Agenda 2030); e por outro lado, as teorias de conspiração da “direita alternativa” (Alt-Right), tais como a formulada por Alex Jones no livro “The Great Reset: And the War for the World” (de 2022).
Neste livro Alex Jones apresenta “os planos das pessoas mais ricas e poderosas do mundo para ganhar ainda mais dinheiro e ter ainda mais poder sobre sua vida”. Para Jones, “The Great Reset” é uma conspiração de “globalistas” que está tentando assumir o controle do mundo e estabelecer um Estado totalitário repressivo. Alex Jones não apresenta a crise global como sendo a crise do capitalismo neoliberal, mas sim como sendo o produto da ganancia das elites corporativas e do “Estado profundo”.
Na verdade, tanto a “direita alternativa” (Alt-Right), quanto a esquerda woke (liberal), estão lutando pelos despojos do sistema decadente do capital do qual são totalmente cúmplices.
Em quase sessenta anos, o capitalismo mundial enfrenta mais um patamar de crise global que adquire um caráter multidimensional. É a “policrise”, palavra da moda entre os esquerdistas (como observou Michal Roberts). A palavra expressa o encontro e o entrelaçamento de várias crises: econômica (inflação e recessão); ambiental (clima e pandemia); e geopolítico (guerra e divisões internacionais).
Na verdade, isto trata-se da “crise sistêmica” ou da “crise estrutural do capita”l que na perspectiva de István Mészáros, é uma crise global. De acordo com ele, ela existe há décadas, sendo a manifestação do processo de autoreprodução destrutiva do capital. E hoje não apenas crise da economia capitalista, mas crise do imperialismo dos EUA-OTAN (o fracasso da geopolítica unipolar); e crise metabólica do capital (crise sanitária permanente, envelhecimento populacional e crise ecológica).
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