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Crises cíclicas e crise estrutural: As formas da crise do capital


Nosso objetivo é esclarecer as diferenças conceituais entre crises cíclicas ou crises conjunturais do capitalismo como modo de produção e a crise estrutural do capital como sistema estranhado de controle sociometabólico. Muitos de forma errônea, utilizam o conceito de crise estrutural do capital (de István Mészáros) para tratar de crises conjunturais do modo de produção capitalista; e outros fazem referência a crise estrutural do capitalismo utilizando como ferramenta analítica a crítica da economia politica exposta por Karl Marx na sua obra clássica O Capital.


Crises cíclicas do capitalismo e crise estrutural do capital dizem espeito a duas formas diferenciadas de crise do capital. É preciso ter cuidado para não as confundir embora elas estejam interrelacionadas e interconectadas no desenvolvimento histórico do sistema global do capitalismo das últimas décadas.


Desde o século XX – pelo menos – ocorreram muitas crises cíclicas ou conjunturais do capitalismo. Elas fazem parte da dinâmica normal do sistema do capital. Karl Marx procurou analisar os mecanismos de funcionamento do modo de produção capitalista – seu desenvolvimento e suas crises cíclicas – n' O Capital. Quando os economistas marxistas falam em crise, eles querem dizer crises cíclicas ou conjunturais do modo de produção capitalista cujo desenvolvimneto se caracteriza pelo crescimento, desaceleração e recessão – algumas inclsuive, bastante profundas como a de 1929 ou 2008 - e depois, retomadas e expansão da economia capitalista.


Por outro lado, crise estrutural do capital só temos uma – a que se desenvolve desde fins da década de 1960 - de acordo com István Meszáros. O termo "estrutural" qualifica a diferença desta crise das crises "normais" do desenvolvimento capitalista. E o mais importate: ela é única na medida que diz respeito à impossibilidade do capital superá-la sem negar a si próprio.

As duas formas de crise operam modos diferenciados de contradições do capital – contradições que se interrelacionam e interconectam .


A crise estrutural explicita fundamentalmente contradições metabólicas do capital; e a crise cíclica e conjuntural explicita as contradições fundamentais do modo de produção capitalista.


As contradições metabólicas que fundamentam a crise estrutural do capital, dizem respeito à “fratura metabólica” operada pelo capital entre os humanos e a Natureza cuja origem histórica - e isto é importante salientar - está na subordinação estrutural do trabalho às disposições estranhadas do capital enquanto agente de extração do sobretrabalho. A partir da alienação do trabalho constituiu-se um conjunto de “mediações de segunda ordem” - utilizando o termo de István Meszáros (no livro A teoria da alienação em Marx) - caracterizadas pela alienação e auto-alienação do trabalho face à produção e reprodução social.


De acordo com a perspectiva ontológica de Gyorgy Lukács exposta no artigo "As bases ontológicas da atividade e do pensamento do homem", o desenvolvimento histórico do processo civilizatório do capital ativou “contradições de tipo cada vez mais elevadas, cada vez mais fundamentais”, que podem ser “aparentemente insolúveis”.


Dizemos nós: as contradições de tipo mais elevado são as “contradições metabólicas” - que se distinguiriam das “contradições fundamentais” do modo de produção capitalista.


Por um lado, as contradições metabólicas dizem respeito à fratura metabólica provocada pelo capital, expondo as contradições objetivas entre a relação-capital e a Natureza ou os pressupostos materiais de reprodução da vida social.


Por outro lado, as contradições fundamentais do capitalismo dizem respeito às contradições expostas pela dinâmica do desenvolvimento do modo de produção capitalista.


Tais contradições objetivas do capital (contradições metabólicas e contradições fundamentais) - na medida em que se desenvolvem - se interrelacionam dialeticamente, o que significando que esta distinção é meramente heurística.


Entendemos que são oito as contradições fundamentais do modo de produção capitalista: a (1) contradição primordial entre valor de uso e valor de troca no seio da forma-mercadoria; (2) a contradição da acumulação capitalista que conduz à superprodução de mercadorias, ao mesmo tempo que corrói a base da procura solvente (demanda efetiva); (3) a contradição entre ampliação das necessidades e carecimentos sociais e os limites estruturais da forma-mercadoria; (4) a contradição entre a produção cada vez mais socializada e a apropriação privada cada vez mais concentrada; (5) a contradição entre a crescente racionalização intra-empresa e o aumento da irracionalidade social; (6) a contradição entre a concorrência, que leva ao aumento da produtividade do capital; e o aumento da composição orgânica do capital, elevando a pressão pela queda da taxa média de lucro; (7) a contradição entre o desenvolvimento da forma material (a base técnica da produção social); e os limites da forma social do capital; e finalmente, (8) a contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e da capacidade humana na redução das barreiras naturais; e a degradação da personalidade humana (o que Lukács denominou “estranhamento”, representando a interversão da força produtiva do capital em “produção destrutiva” do processo civilizatório) (Lukács, 2013; Mészáros, 2002). É importante salientar que a contradição 6 é a determinação estruturante das demais contradições na medida em que ela faz operar a lei de tendencia da queda da taxa de lucro, a lei mais importante do desenvolvimento do modo de produção capitalista (tratamos disso mais detalhadamente no livro "As contradições metabólicas do capital: Colapso ecológico, envelhecimento e extinção humana", de 2020).


O capital é uma “contradição viva”, afirmou Karl Marx. Em termos lógicos, “contradição” não é ser contrariado pelo outro, mas sim, por si mesmo. Assim, o que expomos como contradições metabólicas e contradições fundamentais são feixes de contradições do capital como um todo em que ele - o capital – tende a negar a si mesmo.


Por “capital” entendemos as relações sociais de produção ou as relações de propriedade existentes a partir do quais a força social que tudo abrange e tudo submete, substitui a razão de ser da sociedade por seu propósito de criar sempre mais-valor por meio da exploração da força de trabalho. O capital representa o conjunto das relações de produção que condiciona o processo político e social.


O capital como valor que se autovaloriza, nega a si mesmo, na medida em que, diante de suas crises cíclicas é obrigado a autodesvalorizar-se como condição para reerguer-se para um novo ciclo de acumulação de valor. As crises cíclicas do capital nos mostraram que o capital é a força de autovalorização que nunca consegue evitar completamente sua autodesvalorização. Assim, nos momentos de crise capitalista, ocorre uma desvalorização do capital existente que contraria a definição do capital como valor que se valoriza e compromete a base de seu crescimento, negando as condições de sua existência.


Enquanto crises cíclicas, as crises são inevitáveis e inerentes ao capitalismo. As crises não são um acaso, uma simples possibilidade dentro do sistema capitalista, tampouco acontecem por causa de fatores externos ao sistema. As contradições fundamentais expõem a possibilidade (e necessidade) absoluta de crises cíclicas como forma do desenvolvimento do sistema.


Na medida em que se desenvolve o capitalismo e suas crises cíclicas, fazendo expandir o capital, constitui-se uma nova forma de crise que se distingue das crises cíclicas: a crise estrutural do capital.


Como temos salientado, diferentemente das crises cíclicas do capitalismo ou crise conjuntural, a forma típica de crise sob o sistema capitalista, a crise estrutural opera de outra forma.


Por exemplo, na crise conjuntural, se destrói o capital excedente permitindo a restauração do equilíbrio e o surgimento de uma nova fase de expansão capitalista. O capitalismo como modo de produção caracteriza-se em seu desenvolvimento por enormes flutuações, crises e retomadas dos avanços conjunturais – como vimos acima, diante de suas crises cíclicas, o capital é obrigado a autodesvalorizar-se como condição para reerguer-se para um novo ciclo de acumulação de valor. As crises cíclicas constituem uma determinação central, necessária e incontornável do modo de produção capitalista que pode ser, no máximo, atenuada e postergada, mas que tende necessariamente a se manifestar em algum momento. Isto porque são manifestações do aspecto negativo inerente ao capital que se opõe ao trabalho vivo e amplia a presença do trabalho morto: ao excluir de si a fonte do valor e da valorização, o capital opõe-se a si mesmo em uma contradição paralisante.


Entretanto, por outro lado, na crise estrutural, o que existe é a ativação de um conjunto de contradições e limites que não podem ser superados pelo próprio sistema – “contradições de tipo cada vez mais elevadas, cada vez mais fundamentais”, que podem ser “aparentemente insolúveis” (Lukács).


Esta é a questão: a crise estrutural – persistente e de longa duração - faz o capital defrontar-se com seus limites internos absolutos no que diz respeito aos pressupostos materiais para a reprodução dos humanos (o trabalho vivo).


A dinâmica interna da crise estrutural – e só há uma crise estrutural do capital, aquela iniciada em fins da década de 1960 - não é a mesma das crises cíclicas discutidas – por exemplo, pelos economistas marxistas.


Como dissemos, existe uma interrelação entre crise estrutural e crises cíclicas. Por exemplo, uma epidemia, pandemia ou um desastre ambiental, por exemplo, são situações que podem agravar uma crise cíclica do capitalismo em curso. É o que vemos no século XXI: as contradições metabólicas do se precipitam sobre as contradições fundamentais do modo de produção capitalista. Na verdade, o colapso ambiental e o sociometabolismo da barbárie são produzidas pela relação predatória do capitalismo com a Natureza. Assim, a relação contraditória do capital com a Natureza é um elemento internos ao sistema presidido pelo capital.


ATENÇÃO: Entenda-se "Natureza" não apenas a natureza externa - o meio-ambiente - mas a natureza interna - a subjetividade do trabalho vivo (corpo e mente) devastada pelo movimento do capital na sua etapa de crise estrutural.


Na verdade, as contradições fundamentais do capitalismo e as contradições metabólicas do capital são forças endógenas que, oriundas do ser do movimento do capital, impulsionam a crise do sistema – primeiro como crises cíclicas, representada pelo movimento de desvalorização do capital no interior de seu processo de autovalorização e depois, como crise estrutural.


A crise estrutural do capital não diz respeito aos desarranjos das forças de mercado refletida na queda do consumo ou dos investimentos privados. Não se trata de recuperar o crescimento do PIB e a expansão da economia por meio do ciclo virtuoso de emprego, renda e consumo. A crise estrutural ativa um conjunto de contradições e limites que - por exemplo, no caso do colapso ambiental e do sociometabolismo da barbárie, não se reduzem às falhas de gestão da saúde pública ou a má administração do meio-ambiente. Elas expõem em si e para si, a natureza contraditória do capital enquanto modo de controle estranhado do metabolismo social que – ao preservar e reproduzir a subordinação estrutural do trabalho – tende a negar as suas próprias condições de reprodução social.


A crise estrutural do capital é a crise de reprodução do sistema global do capital - é uma "crise de civilização"! Enquanto o capital continuar como regulador e controlador do processo de metabolismo social, manter-se-á a “fratura metabólica” e as derivações nefastas representadas no espectro do pós-humano (o devir desumanizador dos humanos).


As crises cíclicas do capitalismo - o movimento de autodesvalorizar-se para reerguer-se num novo ciclo de acumulação de valor – na medida em que ocorrem sob a crise estrutural do capital, sofrem alterações na sua dinâmica interna - que não nos compete analisar aqui.


Na verdade, o movimento cíclico reiterativo do capital não é um movimento isonômico espacial e temporalmente. A dialética histórica (e a dialética da Natureza – em si e para si) não se reduz à lógica isonômica e isotônica do ciclo econômico que tem como pressuposto a idéia de que o futuro é mera continuidade do passado. Na verdade, o desenvolvimento histórico do capitalismo mundial - complexo e caótico - comporta continuidades e descontinuidades produzidas por movimentos cumulativos e saltos qualitativamente novos que expõem limites do próprio sistema sociometabólico.


Cada crise cíclica tem características próprias que não apenas se diferenciam uma das outras, mas, na medida em que se reiteram historicamente, diminuem as margens de manobra para o processo de desvalorização do capital e para o deslocamento de suas contradições fundamentais no plano geográfico-temporal – as duas formas usuais do capital reerguer-se. Além disso, deslocamento de contradições podem ser operadas com as contradições fundamentais, mas não com as contradições metabólicas. Hic Rhodus, hic salta!


O capital na sua forma moderna, expandiu-se globalmente em pouco mais de duzentos anos de capitalismo industrial. No século XXI, encontra-se diante de seus limites internos absolutos que se expressam, não meramente por meio de contradições fundamentais que explodem em crises cíclicas, mas por meio de contradições metabólicas que expõem – com a crise estrutural - a “fratura metabólica” entre capital e Natureza.


Não apenas as contradições fundamentais do modo de produção capitalista expõem os limites internos do capital, mas – do mesmo modo – as contradições metabólicas assim o fazem. Enquanto contradições orgânicas do capital, as contradições metabólicas se implicam com as contradições fundamentais do capitalismo e se precipitam sobre elas, expondo a crise estrutural do capital onde tais contradições metabólicas tornam-se limites como barreiras que o capital não pode ultrapassar.


Depois de diferenciarmos as formas de crise do capital a partir dos modos de contradições que as fundamentam (contradições fundamentais do modo de produção e contradições metabólicas), vamos entender a dialética do seu movimento histórico integrado e correlacionado por meio da dialética entre as barreiras [Schranke] ou o limite [Grenze] do capital; ou ainda, da crise enquanto dialética da finitude e infinitude (a partir de Ruy Fausto).

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