Discutir o problema da transição socialista é discutir a questão fundamental do século XXI tendo em vista que, neste século a humanidade se depara com a questão "socialismo ou extinção humana".
Não se trata mais de "socialismo ou barbárie" pois o século XX demonstrou que a barbárie social venceu.
A processualidade histórica do século XXI nos oferece uma nova (e desafiadora) oportunidade elevada à enésima potência. Nada garante que podemos aproveitá-la, afinal é mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo.
Os problemas cruciais do século XXI são problemas que requerem o socialismo ou a transição para o comunismo, sob pena de irmos à extinção como espécie humana. Enfim, queiramos ou não, as transições ecológicas, demográficas e epidemiológicas colocam a necessidade histórica do socialismo enquanto forma política do controle social.
O modo de funcionamento do capitalismo como sistema da produção destrutiva requerem como necessidade histórica o socialismo como sistema social para além da alienação (a inversão do sujeito em objeto e vice-versa).
Não existe uma “terceira via” pois as margens de manobra do reformismo impedem que possamos ter um capitalismo de face humana tendo em vista as candentes contradições da forma-capital (a hegemonia do capital ficticio).
No século XX, na etapa de ascensão histórica do capital, construiu-se com o social-liberalismo, formas de capitalismo capazes de instaurar o bem-estar social. Entretanto, vivemos a etapa histórica de decadencia do capitalismo. O neoliberalismo é a forma politica do capitalismo senil. Um mundo multipolar está sendo gestado no século XXI. Face a isto, o que se coloca hoje como problemática histórica necessária e incontornável, é a discussão da transição socialista.
Tal como a transição climática, transição demográfica e a transição epidemiológica, a transição socialista é a problemática de fundo do conflito geopolítico do século XXI. Na verdade, a discussão do mundo multipolar só oculta a necessária transição socialista.
Mas fica a questão que iremos tratar a título introdutório: o que é a transição socialista ?
Apresentaremos uma nota metodológica visando esclarecer a questão. Não trataremos especificamente da China ou de qualquer outro país socialista. Principalmente, cabe discernir o que é o socialismo enquanto forma politica do controle social. Existe hoje uma tremenda confusão na mente de marxistas e não-marxistas. Isto é conveniente à dominação burguesa.
A maior parte da esquerda marxista tem uma visão idílica do socialismo, confundindo-o com o comunismo. Não entendem que o socialismo é uma transição histórica onde se digladiam a pré-história humana e a verdadeira história da humanidade redimida das forças da alienação.
Neste ensaio falamos em socialismo como sendo uma transição histórica – transição necessária para o comunismo - em condições difíceis e problemáticas que buscaremos esclarecer, sem veleidade de encerrar o debate fraterno com outras leituras marxistas.
Para Karl Marx, a sociedade humana organizada para além do capital é a sociedade comunista e não a sociedade socialista. A rigor, socialismo e comunismo são dois conceitos diferenciados. Ao falarmos “socialismo” nos referimos a uma formação social de transição que hoje – mais do que nunca – é um percurso necessário, sinuoso e difícil para a construção de uma sociedade humana livre.
O socialismo é uma forma histórica antagônica pós-capitalista onde as forças progressivas da emancipação social espreitam o poder acumulado da ordem sociometabólica do capital. Nele as forças (internas e externas) de regressividade histórica ameaçam as promessas da futuridade.
O comunismo para Marx é o verdadeiro início da história humana no sentido de que superamos o capital e não apenas o capitalismo. Pode-se dizer que o comunismo é o horizonte da praxis revolucionária e o socialismo é a caminhada. O comunismo – sempre visto como sendo “o movimento real que supera o estado de coisas atual” (Marx) – é o processo de superação da inversão do sujeito em objeto e vice-versa. Isto é, é o movimento – e não um estado – em que seriam abolidas a divisão hierárquica do trabalho e por conseguinte as classes sociais e o Estado político.
Entretanto, para realizarmos plenamente o comunismo seria necessário um longo processo de transição para além do capitalismo. Esta etapa de transição histórica crucial é o socialismo, etapa necessária a partir do qual se criariam as bases materiais – objetivas e subjetivas – para a sociedade comunista.
Deste modo entendemos o socialismo como sendo a formação social pós-capitalista que preservaria ainda a relação-capital caracterizada pela divisão hierárquica do trabalho, as classes sociais, a lei do valor, a exploração, a luta de classes, a violência política e o Estado político na forma da ditadura do proletariado.
Assim, o socialismo – tal como o capitalismo – é uma forma antagônica ou formação social no interior da qual dever-se-ia constituir as bases materiais – objetivas e subjetivas – para a verdadeira emancipação humana. Enquanto forma de transição necessária – mais decisiva do que o capitalismo – o socialismo seria a fase histórica complexa no interior da qual iriam se digladiam o velho e o novo ordenamento societal.
Nas “Críticas ao Programa de Gotha” de 1875, o termo “ditadura do proletariado” foi utilizado por Karl Marx para configurar a etapa de transição:
Entre a sociedade capitalista e a sociedade comunista medeia o período da transformação revolucionária da primeira na segunda. A este período corresponde também um período político de transição, cujo Estado não pode ser outro senão a ditadura revolucionária do proletariado.
Assim, a transição socialista é um período politico de transição onde se constitui um “Estado operário” capaz de operar a transição exercendo uma dominação de classe sobre a burguesia – tal como a burguesia exerce uma dominação de classe sobre o proletariado por meio do Estado capitalista sob o regime político da democracia liberal.
O socialismo é a etapa política em que o Estado socialista cria meios de coerção e hegemonia contra a oposição burguesa.
Por exemplo, o que diferenciava Karl Marx de Mikhail Bakunin, era a ênfase que Marx fazia no período de transição para o comunismo. Isto é, na necessidade da transição a partir do "afetada de negação", deveria constituir as bases materiais – objetivas e subjetivas – para a emancipação social.
Marx acreditava que era necessário construir as bases materiais para o comunismo. Elas não estavam prontas e acabadas no processo da revolução social. Pelo contrário, como iremos ver adiante, sob o capitalismo tardio, o movimento do capital opera o esforço de destruir as possibilidades materiais – objetivas e subjetivas – de construção da sociedade comunista.
Para os anarquistas, diferentemente de Marx, a revolução social é a abolição imediata do Estado e a constituição do autogoverno dos trabalhadores. Na perspectiva dos anarquistas, a partir do ato histórico da revolução social (o que Marx nas notas críticas ao livro “Estado e Anarquia” de Bakunin denominou sarcasticamente de “Dia da Liquidação Geral – o Dia do Juízo Final”) as bases políticas e materiais (objetivas e subjetivas) da emancipação social estariam prontas e acabadas. Depois da Grande Noite, com a Revolução Socialista, o comunismo estaria instaurado na Terra quase como a representação do Paraíso cristão.
O mito dos sujeito revolucionário pronto e acabado (a classe operária ou o proletariado), capaz de por si só, auto-emancipar-se, está presente não apenas nos anarquistas, mas em algumas correntes políticas do marxismo.
Por exemplo, os marxistas conselhistas dos anos 1920 acreditavam que o proletariado seria capaz de imediato de autogestão política e no momento logo após a revolução social, seriam capazes de abolir o Estado construindo uma república dos conselhos operários. Era uma forte crença na Selbsttätigkeit (ou auto-atividade ou espontaneidade) do proletariado capaz de abolir a forma da materialidade política e a divisão hierárquica do trabalho, a divisão entre dirigentes e dirigidos – e portanto, a abolição das classes sociais – de imediato.
Nesse caso, a revolução social entendida como ato histórico que derrubaria o Estado capitalista seria sucedida não pelo Estado socialista, mas pelo comunismo ou a sociedade das comunas. Nesse caso, a rigor, não haveria propriamente uma transição socialista ou mesmo a problemática da forma política do Estado operário.
Entendemos que a perspectiva clássica de Karl Marx foi conceber a necessidade ontológica de uma transição socialista ou transição para o comunismo (e não transição para o socialismo, pois socialismo não se identifica efetivamente com comunismo).
Ao confundir os dois conceitos – socialismo com comunismo – tende-se a minimizar ou desprezar a problemática decisiva da transição.
Ao mesmo tempo, deixa-se de lado um problema fundamental: a formação das bases materiais – objetivas e subjetivas – para a construção da nova sociedade emancipada. Enfim, enquanto forma social superior, o comunismo é produto de uma formação político-social (ou intelectual-moral) no interior da qual se formaria a Selbsttätigkeit da classe social capaz de construir a sociedade humana livre. Esta é uma perspectiva histórico-materialista e dialética que muitos marxistas desprezam e acabam confundindo-se com os anarquistas. Por isso, Marx poderia afirmar: “Não sou marxista”.
É importante salientar que o comunismo enquanto “movimento real que supera o estado de coisas atual”, ocorre no interior da forma histórica de transição socialista onde se devem construir os pressupostos materiais necessários para uma sociedade humana livre. O principal deles é o desenvolvimento das forças produtivas a partir dos quais poderiam se erguer uma sociedade para além da escassez social.
Desenvolver as forças produtivas significa também a formação de sujeitos humanos capazes de auto-emancipar-se do capital (o que não deixa de representar a dimensão subjetiva do desenvolvimento das forças produtivas).
Assim, a formação das bases materiais do comunismo exige um longo período histórico de luta antagônica com as figurações do capital - tanto na etapa capitalista, quanto – principalmente - na etapa socialista.
O capitalismo na etapa de crise estrutural do capital, é o sistema da “produção destrutiva”. Isto é, o capitalismo senil tornou-se incapaz de desenvolver as forças produtivas – que assim, se tornam forças destrutivas. Isto significa destruir não apenas a Natureza, mas principalmente a capacidade subjetiva das pessoas se auto-emanciparem do capital. É a dessubjetivação de classe que representa o sociometabolismo da barbárie.
Em sua época, Marx acreditava que o desenvolvimento do capitalismo pudesse constituir as bases materiais (objetivas e subjetivas) para a emancipação humana do capital. Para ele, o desenvolvimento das forças produtivas sob o capitalismo – incluindo nelas, a espontaneidade (a Selbsttätigkeit) do proletariado rebelde e suas habilidades dirigentes (o controle da produção) - forjariam a ante-sala do comunismo. Nesse caso, o período de transição para o comunismo poderia ser mais curto, contendo elementos capazes de abolir de imediato, não apenas o capitalismo, mas o próprio capital por meio da formação dos conselhos de trabalhadores.
De certo modo, para Marx, o proletariado com capacidade de auto-emancipar-se seria forjado na luta de classes no capitalismo - e o ato histórico de revolução social, seria o momento pleno de sua realização como classe em-si e para-si (ou ainda, como pensou Meszáros, classe para-além-de-si).
Entretanto, o que o século XX mostrou foi que a construção das bases materiais para a construção do comunismo não se daria efetivamente sob o capitalismo mais desenvolvido, mas em sociedades pós-capitalistas. Pelo contrário, o capitalismo na medida em que se desenvolvesse, poderia desefetivar a capacidade do proletariado em ir além do capitalismo (o que autores como Herbert Marcuse e os teóricos de Frankfurt proclamariam na década de 1960 como sendo a morte do proletariado como sujeito revolucionário).
Portanto, as Revoluções sociais que ocorreram no século XX, ocorreram em sociedades agrárias periféricas como, por exemplo, a URSS e a China. Inaugurou-se a partir daí, uma etapa de transição socialista cujo principal objetivo foi promover o desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social, isto é, compor a força objetiva e subjetiva do proletariado para além da reificação e do fetichismo da mercadoria dominante nas sociedades do capitalismo tardio.
Tais revoluções socialistas - contrariamente àquilo que pensou Marx no século XIX, ocorreram não em sociedade industriais desenvolvidas mas em sociedades agrárias onde era baixo o desenvolvimento das forças produtivas, como foi o caso da Rússia em 1917 e da China em 1949.
Após tomar o poder político e instaurar o Estado nacional-popular ou socialista, o Partido Comunista - que conduziu a revolução das massas - foi obrigado pelas circusntancias históricas, a colocar como tarefa histórico e política, a construção das bases materiais para o comunismo.
Estado político, Partido (e sua burocracia) e classes sociais – todos personificações do capital não deixaram de compor a transição socialista nestes países. Nesse caso, o socialismo do século XX caracterizou-se efetivamente como sendo o “socialismo de acumulação de capital”.
Mas a transição socialista é necessariamente contraditória.
Tanto a Revolução Russa quanto a Revolução Chinesa entre outras, foram revoluções pós-capitalistas que não aboliram – e nem poderiam abolir - o capital.
O pressuposto histórico-ontológico para a construção da sociedade humana livre (o comunismo) era o desenvolvimento das forças produtivas, base material (objetiva e subjetiva) que possibilitaria ir além da escassez e da carência que caracterizou a sociedade burguesa.
A passagem para uma sociedade emancipada implicaria efetivamente um período de transição histórica que - nas condições do cerco imperialista como ocorreu no século XX e também no século XXI -, tornar-se-ia deveras mais difícil a construção das bases materiais – objetivas e subjetivas – para além do capital.
Na próxima postagem, irei expor como a problemática da transição foi esclarecida pela distinção que I. Mészáros fez entre capital e capitalismo e quais os principais obstáculos – internos e externos - à transição socialista no século XXI.
Não nos deteremos nesta reflexão, em casos específicos – por exemplo a transição socialista da China, embora ela possa ser – devido a sua força geopolítica e geoeconômica – o exemplo maior da transição socialista no século XXI.
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