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A fratura metabólica do capital (2)




O conceito de fratura metabólica do capital ou fratura metabólica [metabolic rift] dos humanos com a Natureza teve uma primeira (e primitiva) elaboração com Karl Marx nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1844. Naquela época, Marx ainda não tinha desenvolvido sua crítica da economia política. Ele estava ainda sob influência da antropologia filosófica de Ludwig Feuerbach, embora diferentemente do filósofo alemão, Marx não concebe a natureza como um existente autônomo e independente, possuindo primazia ante o espírito. Para Marx, a natureza está integrada aos humanos pelo trabalho.


A elaboração marxiana do conceito de trabalho estranhado [Die entfremdete Arbeit] contém interessantes elementos para refletirmos numa perspectiva dialética a problemática ecológica para além do viés ambientalista. É a partir do conceito de trabalho estranhado que Marx reflete sobre a Natureza, isto é, sobre a multidimensionalidade da fratura metabólica do capital.


Vejamos como Marx expõe as determinações do trabalho estranhado entendido como a expressão histórica da fratura metabólica entre os humanos e a Natureza. É a alienação (ou estranhamento) que explica o colapso ambiental, mas não apenas o colapso do meio-ambiente, mas o colapso dos humanos. A perspectiva dialética faz com que ampliemos nossa abordagem da devastação da Natureza. Isto é, ela diz respeito à natureza externa e a natureza interna. Nisso Marx em 1844 nos apresentou diversas perspectivas do significado de Natureza. Vejamos - faremos sempre que for necessário a compilação do texto original de Marx em alemão::


Em primeiro lugar, o trabalho estranhado se manifesta na relação do trabalhador [Arbeiters] com o produto do trabalho que lhe aparece como objeto estranho com poder sobre ele. Diz ele: “Esta relação é simultaneamente a relação com o mundo sensorial externo, com os objetos da natureza como um mundo estranho que a confronta hostilmente”. Nesse caso, o produto do trabalho, o mundo exterior sensorial, os objetos da natureza [Naturgegenständen], aparece como um objeto estranho [einer fremden] que tem poder sobre os humanos [fremden und über ihn mächtigen Gegenstand] e lhes confronta de modo hostil [ihm feindlich gegenüberstehenden Welt].


Assim, a primeira relação do trabalhador é com um mundo de mercadorias que ele criou mas que ele não se reconhece como seus. Pelo contrário, é uma natureza exterior sensível que tem um poder sobre eles e não apenas – ela os confronta hostilmente. Nesse caso, temos uma primeira concepção de natureza em Marx: a natureza enquanto mundo exterior sensível, produto da atividade humana prática, e que Marx mais tarde, caracterizaria como sendo uma “imensa coleção de mercadorias”, coisas que exercem um poder sobre ele [o “fetiche da mercadoria”]. É o que poderíamos denominar de Natureza externa ou Natureza produzida. É a natureza ambiente produzida pelo homem ou natureza-mercadoria que se volta contra ele.


Em segundo lugar, o trabalho estranhado se manifesta na relação entre o trabalho [ou o trabalhador] e o ato de produção [Akt der Produktion] no trabalho [innerhalb der Arbeit]. Isto é, o ato de alienação da atividade humana prática que diz respeito ao processo de trabalho (mais tarde qualificaria como processo de trabalho enquanto processo de valorização). Diz Marx: “Esta relação é a relação do trabalhador com a sua própria atividade como uma atividade alheia a ele” – no original: das Verhältnis des Arbeiters zu seiner eignen Tätigkeit als einer fremden, ihm nicht angehörigen. Isto é, o trabalho estranhado é uma atividade que lhe é estranha e que não lhe pertence.


Na medida em que ele (o trabalhador) não tem o controle da atividade – pois os humanos se encontram sob o domínio da propriedade privada dos meios de produção – aquela atividade vital não lhe pertence [ihm nicht angehörigen] e por conseguinte, ela lhe é estranha [fremden].


Novamente, temos em Marx o tema do mundo estranho que lhe confronta hostilmente porque não lhes pertence (o trabalhador está alienado dele). Na medida em que os meios de produção não lhe pertencem, a Natureza constitutiva – seu corpo e mente - se volta contra ele. Esta condição de proletariedade faz com que a atividade humana prática (o trabalho) – nesse caso, o trabalho estranhado [die entfremdete Arbeit], provoca no trabalhador, sofrimento, impotência, emasculação (Marx disse: “[...] a atividade como sofrimento [Leiden], a força como impotência [die Kraft als Ohnmacht], a procriação como emasculação [die Zeugung als Entmannung] - a própria energia mental e física do trabalhador, a sua vida pessoal se volta contra ele, porque o que é vida estranhada senão atividade como uma atividade dirigida contra si mesmo, independente dele, não lhe pertencendo”). Isto é, a atividade [Tätigkeit] se dirige contra ele mesmo tal como uma coisa [Ding] que lhe defronta hostilmente.


O que se volta contra ele não é apenas a Natureza externa, o meio-ambiente tornado mercadoria ou produto do trabalho objetivado dos humanos, mas a Natureza interna, sua subjetividade (corpo e mente) adoecida.


Na medida em que está alienado da sua vida pessoal, o trabalhador sofre a autoalienação: “Autoalienação, como acima a alienação da coisa” [Die Selbstentfremdung, wie oben die Entfremdung der Sache]. A energia física e mental do trabalhador [ die eigne physische und geistige Energie des Arbeiters]– isto é, diz Marx, “sua vida pessoal [persönliches Leben]”, volta-se contra ele na medida em que aquela atividade não lhe pertence [als eine wider ihn selbst gewendete, von ihm unabhängige, ihm nicht gehörige Tätigkeit]. A vida é atividade – na medida em que a atividade prática dos humanos não lhes pertence, ela – a vida – volta-se contra ele mesmo como uma força independente.


O trabalho alienado faz com que aquilo que é parte da natureza da força de trabalho (a capacidade física e mental dos humanos) volta-se contra ele próprio. Ao ser consumida pelo capital, a força de trabalho como mercadoria não pertence ao trabalho vivo. Ela é independente do trabalhador na medida em que não lhe pertence. É assim, uma natureza estranhada ou ainda, autoalienada.


Percebemos que Marx expõe a partir do trabalho estranhado, modos de fratura metabólica do homem com a Natureza:


A primeira determinação diz respeito à fratura metabólica com a Natureza produzida, os objetos da natureza, o mundo natural sensível que – na medida em que estão alienados dos humanos – se voltam contra ele. Podemos entender o Antropoceno como sendo a era da Natureza produzida que se defronta de modo hostil com o homem na medida em que ela está alienada dele.


A segunda determinação diz respeito à fratura metabólica com a Natureza constitutiva, o corpo e mente dos humanos, alienados pelo capital na medida em que a força de trabalho como mercadoria, é consumida pelo capital. Esta Natureza constitutiva se volta contra os humanos por meio do adoecimento físico ou mental (a doença como coisa).


A atividade prática sensível – o processo de trabalho capitalista – danifica o trabalho vivo, pois inverte o sentido da atividade vital tornando-a expressão do sofrimento, impotência e emasculação.


Como vimos a reflexão marxiana de 1844 expõe a múltipla determinação da fratura metabólica do capital: Natureza produzida ou o meio-ambiente industrial feito mercadoria que danifica a biosfera com – por exemplo – a emissão de CO2 por conta do combustível fóssil; ou a Natureza constitutiva dos humanos que face à atividade vital estranhada se volta contra os humanos como adoecimento (a doença como uma coisa).


Finamente, Marx indicou uma terceira determinação do trabalho alienado: a fratura metabólica da Natureza compartilhada. Diz ele:


“O homem [Der Mensch] é um ser genérico [Gattungswesen], não só na medida em que teoricamente e na prática faz o género [Gattung], tanto do seu próprio quanto do das outras coisas, seu objeto, mas também [...] na medida em que se relaciona consigo mesmo [indem er sich zu sich selbst] como um ser universal e, por isto livre” [einem universellen, darum freien Wesen verhält]


Para Marx (em 1844) sob a influência da antropologia de Ludwing Fuerbach, o homem ou o trabalhador está alienado de si mesmo – e dos outros – como ser humano ou ser genérico.


Esta “Natureza compartilhada” com outros humanos foi alienada pelo trabalho estranhado, der Entfremdung der praktischen menschlichen Tätigkeit, die Arbeit – a alienação da atividade humana prática, o trabalho.


É esta terceira determinação que explica no século XXI, o estranhamento ou o sociometabolismo da barbárie, pois ao alienar-se da "Natureza compartilhada", danifica-se a auto-referencia pessoal e o laço pessoal.


A idéia da “Natureza compartilhada” – natureza que os humanos compartilham entre si - remete à questão das Gattungsleben ou “vida da espécie”. Diz Marx:


“[...] o homem (tal como o animal) vive da natureza inorgânica, e quanto mais universal o homem é do que o animal, tanto mais universal é o âmbito da natureza inorgânica da qual vive [um so universeller ist der Bereich der unorganischen Natur, von der er lebt], .”


O homem compartilha com os outros animais, a natureza inorgânica (a natureza externa). Eles – como os demais animais - habitam a biosfera. Na medida em que os humanos desenvolvem as forças produtivas – os meios técnicos – os humanos se tornam mais universais e por conseguinte, como diz Marx, maior é “o reino da natureza inorgânica da qual vive” [der Bereich der unorganischen Natur]. A natureza inorgânica é também a natureza produzida pelos homens, os meios de produção ou os meios técnicos desenvolvidos como força produtiva (objetos externos).


Como vimos, essa natureza inorgânica na qual o homem vive é a “Natureza produzida” que ele fez referência na primeira determinação: o mundo natural sensível, o objeto da natureza como objeto (e produto) da atividade prática sensível dos humanos.


Portanto, um ser universal e livre é um ser – animal – que se tornou humano por meio do trabalho e por conseguinte ampliou o âmbito da natureza inorgânica da qual vive [von der er lebt] – isto é, ampliou o âmbito dos meios técnicos (civilização material).


Marx não fala da dominação da Natureza inorgânica pelo homem, mas sim da ampliação da esfera da “Natureza compartilhada” – o compartilhamento da Natureza produzida. Foi por meio do trabalho que os humanos se universalizaram, pois o trabalho fez os humanos incorporarem a natureza na sua vida e atividade humana prático-espiritual (alimentação, aquecimento, vestuário, habitação, etc – enfim, meios técnicos materiais).


Diz Marx:


“Na prática, a universalidade do homem aparece precisamente na universalidade que faz de toda a natureza, o seu corpo inorgânico, tanto na medida em que é [1]. um meio imediato de vida [ein unmittelbares Lebensmittel] e na medida em que é [2.] matéria, o objeto e o instrumento de sua atividade vital [die Materie, der Gegenstand und das Werkzeug seiner Lebenstätigkeit ist].”


A universalidade do corpo inorgânico do homem se manifesta nos meios de produção (a matéria-prima e os objetos de trabalho) da sua atividade vital. Estar alienado dos meios de produção devido a propriedade privada é estar alienado do corpo inorgânico do homem.


Deste modo, existe uma unidade orgânica entre os humanos e a natureza (orgânica e inorgânica), isto é, a “Natureza produzida” (o objeto da natureza ou o mundo natural sensível - no sentido de natureza in-corporada no mundo dos homens pelo processo civilizatório). Diz ele:


“Assim como as plantas, os animais, as pedras, o ar, a luz, etc., teoricamente fazem parte da consciência humana, em parte como objetos da Ciência Natural e em parte como objetos de arte, a sua natureza inorgânica espiritual, meio de vida espiritual que ele tem primeiro que preparar para a fruição e a digestão, eles também fazem praticamente parte da vida e da atividade humana”.


A “Natureza compartilhada” é a unidade prático-espiritual entre os humanos e o meio-ambiente e entre os humanos entre si por meio do meio-ambiente, seja como objeto da Ciencia Natural ou objetos da Arte. A Natureza compartilhada é meio de vida espiritual na medida em que são objetos da Ciência Natural e também da objetos de Arte, a “natureza inorgânica espiritual” [geistige unorganische Natur], meio de vida espiritual que os humanos preparam a fruição e a digestão [zum Genuß und zur Verdauung].


Assim, a biosfera, a porção do planeta onde encontramos vida, ou seja, o conjunto de todos os ecossistemas, faz praticamente parte da vida e da atividade humana. A fratura metabólica da “Natureza compartilhada”, por conseguinte é a degradação da vida e da atividade humana prático-espiritual na medida em que a Natureza compartilhada se degrada (a vida da espécie).


Novamente, a determinação reflexiva da categoria marxianas de Entfremdete Arbeit: as formas da Natureza alienada pelo capital (Natureza produzida, Natureza constitutiva e Natureza compartilhada) - volta-se contra os humanos.


Uma das passagens mais significativas dos Manuscritos de 1844, é onde onde Marx expõe o que ele entende por Natureza e defende a idéia da totalidade viva da Natureza - da qual faz parte o homem - fraturada pelo capital. Diz ele:


“A natureza é o corpo inorgânico do homem, ou seja, a natureza na medida em que ela mesma não é um corpo humano” [No original: Die Natur ist der unorganische Leib des Menschen, nämlich die Natur, soweit sie nicht selbst menschlicher Körper ist].


Isto é, neste caso, para Marx, a natureza é – num primeiro momento - a “Natureza produzida”, aquilo que foi apropriada pelos humanos como objeto, a Natureza in-corporada, extensão dos próprios humanos, mas que não se confunde com eles (a natureza não é um corpo humano). Prossegue ele:


“O homem vive da natureza, o que significa: a natureza é o seu corpo [Die Natur ist sein Leib], com o qual ele deve permanecer em constante processo para não morrer”.


Antes, Marx afirmara que a natureza é a Natureza produzida - a biosfera-mercadoria - apropriada pelos humanos. Depois, ele ressalta logo a seguir, que a natureza é a Natureza constitutiva do corpo dos humanos: “A natureza é o seu corpo” – um corpo em constante processo metabólico com a Natureza produzida e a Natureza compartilhada:

“O fato de a vida física e mental do homem estar interligada com a natureza não tem outro significado senão o de que a natureza está interligada consigo mesma, uma vez que o homem é uma parte da natureza [No original: Daß das physische und geistige Leben des Menschen mit der Natur zusammenhängt, hat keinen andren Sinn, als daß die Natur mit sich selbst zusammenhängt, denn der Mensch ist ein Teil der Natur]”


Esta magistral passagem de Marx enfatiza a interligação entre os humanos e a “Natureza produzida” (o homem vive da natureza) na medida em que eles próprios são a “Natureza constitutiva” e “Natureza compartilhada” (o homem é uma parte da natureza – no original, der Mensch ist ein Teil der Natur ).


Na verdade, o que Marx expós acima é o significado de “gênero vivo” que é o homem (o homem é o animal capaz de interligar-se com a Natureza, produzir a Natureza e compartilhar a Natureza).


Assim, a antropologia filosófica de Marx desde a sua origem é fundamentalmente ecológica no sentido amplo da palavra. Ao mesmo tempo, é histórico-materialista no sentido do trabalho como fundamento do ser social: o trabalho estranhado – isto é a fratura metabólica do capital é causa-efeito da propriedade privada.


A questão do Marx de 1844 é a crítica da propriedade privada dos meios de produção, pois é a partir dela que se opera o trabalho estranhado. Nesse caso, o capital danifica a “vida do gênero” e por conseguinte, a capacidade de universalidade e de liberdade dos humanos (a universalidade em Marx diz respeito ao desenvolvimento das forças produtivas sociais, sendo o trabalho vivo a mais importante força produtiva social que é danificada na medida em que aprofunda-se o trabalho estranhado).


A constituição da propriedade privada dos meios de produção que se tornaria dominante com o modo de produção capitalista, teria impactos fundamentalmente ecológicos no sentido amplo da palavra:


“Na medida em que o trabalho alienado aliena o homem [Indem die entfremdete Arbeit dem Menschen, literalmente, “Ao alienar o trabalho das pessoas”] 1. da natureza [die Natur entfremdet, literalmente, “aliena a natureza”] e 2. de si mesmo, da sua própria função ativa, da sua atividade vital [sich selbst, seine eigne tätige Funktion, seine Lebenstätigkeit], ele aliena o homem do género [die Gattung]: faz da vida de género [Gattungsleben] um meio de vida individual [zum Mittel des individuellen Lebens]”.


Isto é, o trabalho alienado aliena os humanos da “Natureza produzida” (a natureza propriamente dita, o meio-ambiente ou a biosfera tornada mercadoria) e da “Natureza constitutiva” (a natureza que nos constitui física e mentalmente– a vida pessoal ou a vida individual) – e, também da “Natureza compartilhada” entendida como sendo a “vida do gênero”, a sua atividade vital prático-espiritual ou o trabalho que lhe permitiu ser universal e livre – isto é, lhe permitiu desenvolver a individualidade ou a vida individual na medida em que seus objetos foram compartilhados prático-espiritualmente.


Existe uma distinção entre “vida da espécie” [das Gattungsleben] e “vida individual” [das individuelle Leben], sendo que a primeira desenvolve a segunda. Entretanto, com o trabalho estranhado, a “vida da espécie” torna-se um meio da vida individual. Nesse caso, existe uma inversão. O trabalho estranhado torna-se meio de vida – que produz a morte pois, como vimos, quando a atividade vital dos humanos torna-se atividade estranhada, ela se volta contra ele por meio dos adoecimentos do corpo e mente (a fratura metabólica da “Natureza constitutiva”). Marx ressaltou que ao desligar-se da atividade de vida, a “vida individual” adquire uma forma abstrata e alienada.


A teoria dialética da “fenda metabólica” da Natureza produzida pelo capital é a reafirmação de que o foco da análise de Marx é o metabolismo social, com trabalho e o processo de produção constituindo a mediação entre a humanidade e o metabolismo universal da natureza – isto é, a natureza como um todo (Natureza produzida, Natureza constitutiva e Natureza compartilhada – como vimos acima).


A mediação – histórico-materialista - em relação à totalidade está, é claro, no cerne do método dialético. No caso da “fenda metabólica” que se aprofunda com o capitalismo do século XXI, estamos falando de uma ruptura no metabolismo, ou o que Marx chamou de “mediação estrnhada” e o que István Mészáros denominou “mediações de segunda ordem” entre a humanidade histórica e o resto da natureza, constituindo a contradição metabólica que abarca a dimensão ecológica no sentido ampliado.


Esta é, de fato, a maneira pela qual Marx construiu sua crítica ecológica – que não se reduz a critica ambientalista pois a ecologia de Marx como vimos acima, não diz respeito apenas à Natureza produzida, a Natureza externa.


Dizer que isso a idéia de “fratura metabólica” é dualista porque de um lado, temos a humanidade e de outro, a natureza não-humana, é esquecer que a humanidade faz parte da natureza e que a mediação material da relação entre os humanos e a natureza, na forma de metabolismo/produção, é tanto a essência da conexão humana com a Terra, quanto a base da contradição e da mudança histórica.


Portanto, ressaltemos mais uma vez: o conceito de “fenda metabólica” de Marx surgiu da compreensão do trabalho e do processo de produção como constituindo o metabolismo social, ou a relação especificamente humana com o metabolismo universal da natureza


No entanto, uma vez que o capitalismo se baseia desde o início na tripla alienação dos humanos com respeito à Natureza produzida, Natureza constitutiva e Natureza compartilhada e tem como objeto singular, a acumulação de capital, as fissuras no metabolismo humano da natureza são uma parte inerente do sistema.


Nos Manuscritos de Paris (de 1844), analisados acima, Marx não tinha claro ainda a crítica da economia politica, nem uma concepção de metabolismo social e metabolismo natural a partir da crítica do capital.


Primeiro, Karl Marx conceituou a “fenda metabólica” muito mais tarde (em 1867) - em termos da crise de fertilidade do solo na Inglaterra do século XIX, em que os nutrientes do solo foram removidos da terra para a alimentação, sendo a fibra vegetal, por exemplo, enviada a centenas e até milhares, de quilômetros de distância para novos centros urbanos. Esses nutrientes não voltaram para a terra, mas se tornaram resíduos nas cidades. Surgiram tentativas massivas de reparar a queda da fertilidade do solo por meio da importação de fertilizantes naturais, como o guano do Peru, seguido pelo desenvolvimento de fertilizantes artificiais. Desde o início, portanto, a ecologia marxista baseou-se na noção da interrupção contínua dos ciclos biogeoquímicos como sendo algo inerente ao capitalismo. A crise da fertilidade do solo é expressão daquilo que expomos acima como sendo a alienação da Natureza produzida (a agricultura é a produção de objetos naturais que nas condições do capitalismo industrial retira os nutrientes da terra ocasionando a queda da fertilidade do solo).


A fratura metabólica produzida pelo capital ocasiona a crise ecológica que adquire na perspectiva dialética, uma dimensão totalizante e totalizadora.


Nosso objetivos nestas postagens foi enfatizar que a crise ecológica não se reduz à crise ambiental ou a devastação produzida pelo capital à natureza exterior, a natureza produzida. Ela diz respeito à devastação produzida pelo capital à natureza interior (constitutiva e compartilhada) dos humanos: a vida pessoal com danos do corpo e mente e a vida social com a degradação da sociabilidade ou da “vida do gênero”. Inclusive, podemos utilizar uma fórmula algébrica para expressar os elementos simples da fratura metabólica da Natureza pelo capital:


K > N (e>Np) + (i>Nc+Ncc)


Onde

K é o capital.

“>” fraturado por um traço vertical é a fratura metabólica entre o capital e a natureza.

N é a natureza que pode ser caracterizada como natureza externa (e) entendida como Natureza produzida (Np); e natureza interna (i) entendida como Natureza constitutiva (Nc) e Natureza compartilhada (Ncc).


Por um lado, a fratura metabólica provocada pelo capital entre o homem e a natureza externa se manifesta no colapso ambiental; e a fratura metabólica provocada pelo capital entre o homem e a natureza interna se manifesta no debilitamento físico e mental do trabalho vivo na medida em que se debilita a natureza constitutiva e a natureza compartilhada dos humanos.


Portanto, a fratura metabólica do capital significa não apenas a ruptura dos humanos com o meio-ambiente, mas a ruptura dos humanos consigo mesmo (auto-alienação) e com os outros humanos (vida social). Nesse caso, o sociometabolismo da barbárie (ou o colapso dos humanos) é resultado da fratura metabólica do capital.


É a multidimensionalidade da alienação e auto-alienação que Marx em 1844 abordou ainda de forma filosófica. A fratura metabólica do capital produz não apenas o colapso ambiental, mas o colapso do humano (a barbárie social). É o que podemos denominar “fratura do humano” que abrange a devastação do corpo e da mente, com adoecimentos produzidos não apenas pela degradação da Natureza produzida (o meio-ambiente), mas pela degradação da Natureza compartilhada.


Recentemente, John Bellamy Foster e Brett Clark no livro The Robbery of Natureza (Monthly Review Press, 2020) criaram o conceito de “fratura corporal” [Corporeal Rift] visando abordar, de acordo com eles, um novo aspecto da devastação da Natureza feita pelo capital. A “fratura corporal” explica por exemplo, os adoecimentos físicos produzidos pelo processo de produção do capital.


Os autores observam que a “fenda metabólica” tem sido muitas vezes interpretada simplesmente em termos da relação dos humanos com a natureza não-humana. No entanto, eles observam que os próprios humanos, como seres corpóreos, são uma parte emergente da natureza. Assim, a “fenda metabólica” também se aplicaria segundo eles, ao corpo humano. Foster e Clark observam que isso é de fato consistente com toda a estrutura conceitual de Marx. Assim, Karl Marx, referindo-se ao livro “A condição da classe trabalhadora na Inglaterra” de Friedich Engels, duas décadas depois em O Capital, argumentaram que o mesmo fenômeno geral da ruptura no metabolismo da natureza representado pelo comércio de guano também foi representado pelos efeitos sobre a existência corpórea humana das epidemias periódicas facilitadas pelas relações capitalistas de produção (a exploração capitalista faz adoecer o corpo humano como Marx mostrou no Capital ao tratar da jornada de trabalho).


Portanto, o conceito de “fenda corporal” introduzido por Foster e Clark, explica como o capitalismo cria fendas na existência corporal humana. Ele amplia o foco do colapso ecológico, abordando em termos humano-ecológicos, questões históricas concretas como: (1) a extrema exploração e encurtamento da vida dos trabalhadores; (2) o papel da escravidão (por exemplo, o fato, discutido por Marx, de que os contratos de leilão de escravos entre compradores e vendedores de escravos muitas vezes designavam a expectativa de vida dos escravos como não mais do que sete anos); (3) a expropriação do trabalho e dos corpos das mulheres associados às formas capitalistas de reprodução social; (4) o genocídio historicamente infligido às populações indígenas; e (5) o papel das pandemias, como com o COVID-19.


Não podemos deixar de reconhecer que o conceito de “fratura corporal” elaborado por Foster e Clark constitui um avanço para além da abordagem restritiva de ecologia. A ideologia ambientalista deixa de lado a devastação ecológica do corpo e da mente dos humanos pelo capital e a devastação da vida social – e portanto da vida individual – pelo trabalho estranhado. O conceito de "fratura corporal" nos permite pensar a pandemia da Covid-19 como sendo um exemplo de devastação ecológica.


Entretanto, fazer referência apenas à “fratura corporal” é insuficiente pois o que se trata é a “fratura do humano” constituído pela subjetividade (corpo, mente e socialidade). A perspectiva critica de Marx (em 1844) forneceu uma perspectiva dialética, totalizante e totalizadora do movimento de fratura da Natureza produzida pelo capital. Assim, o que se expõe no capitalismo do século XXI é não apenas a devastação da biosfera, mas a devastação do humano que se manifesta com o sociometabolismo da barbárie.





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