top of page

O capitalismo da hipnose social




O hipnocapitalismo é o "capitalismo do sono", o qual induz o adormecimento do pensamento crítico ou da consciência de classe. O enfraquecimento da consciência de classe tem raízes histórico-materiais, como, por exemplo, a reestruturação produtiva e a nova divisão internacional do trabalho que a partir da década de 1980 enfraqueceu objetivamente a classe operária nos países capitalistas avançados, onde o proletariado industrial estava mais organizado. A globalização capitalista resultou no desaparecimento de muitos distritos industriais e no deslocamento das fábricas para a periferia do sistema mundial de capital, onde o proletariado industrial não possuía o mesmo nível de organização ou onde regimes autocráticos mantinham a disciplina fabril.


O movimento de relocalização industrial que ocorreu a partir da grande crise capitalista dos anos 1970, tinha como objetivo aumentar a taxa de exploração e restaurar a lucratividade que havia sido deprimida desde meados da década de 1960 nos países capitalistas mais avançados. Ao reorganizar espacialmente a produção capitalista, o capital obteve dois benefícios: (1) aumentou a taxa de exploração nos novos locais de produção de mais-valia (Sudeste Asiático, Coréia do Sul, China, América Latina e, posteriormente, após o fim da URSS, Leste Europeu); (2) desmontou os coletivos de classe nos países capitalistas avançados, onde se constituíram originalmente forças sociais e políticas, tais como sindicatos e partidos sociais-democratas, que eram guardiões do Estado de bem-estar social ou do compromisso fordista.


A nova divisão internacional do trabalho ocorreu simultaneamente à transição das "sociedades industriais" para as "sociedades de serviços". É inegável que a relocalização das indústrias no Sul Global, escapando do controle social e político da produção de mais-valia, reforçou a emergência das "sociedades de serviços". Entretanto, vale dizer, o processo de crescimento dos serviços no centro capitalista vem ocorrendo há décadas, pelo menos desde o fim da Segunda Guerra Mundial em 1945, com o desenvolvimento da produção capitalista intensiva em capital e a complexificação da divisão social do trabalho interna a cada sociedade capitalista.


Além da nova divisão internacional do trabalho e da transição histórica das "sociedades industriais" para as "sociedades de serviços", outro fator que contribuiu para a redução da classe operária no centro capitalista, foi a Terceira Revolução Tecnológica e o aumento da produtividade do trabalho , na medida em que o capital produzia mais com menos trabalho vivo.


Todos os elementos objetivos discriminados acima contribuíram para o enfraquecimento da classe operária, o setor mais organizado do proletariado e o reduto da luta de classes, da consciencia de classe e da construção do Estado de Bem-Estar Social.


No entanto, existem fatores político-ideológicos que também explicam o enfraquecimento da luta de classes: a rendição ideológica dos partidos social-democratas (ou social-liberais), que foram hegemônicos no sindicalismo da Europa Ocidental e dos EUA, às forças do capital (no Brasil, o caso emblemático no Brasil foi a burocratização e a rendição ideológica do PT na década de 1990).


Todas essas condições histórico-materiais (sociais, econômicas, políticas e ideológicas) produziram o que denominamos o "sono da consciência de classe" ou o novo processo de subjetivação neoliberal lastreado na "dessubjetivação de classe". É por isso que o capitalismo neoliberal é o hipnocapitalismo.


O conceito de dessubjetivação de classe (ou esvaziamento da luta de classe e da formação da consciência de classe) é crucial para explicar a emergência do novo princípio de subjetivação neoliberal. A dessubjetivação de classe é o fator histórico-material da fabricação do sujeito neoliberal.


No entanto, o hipnocapitalismo também é conhecido como "capitalismo da hipnose social", pois apresenta uma outra dimensão: a manipulação social no hipnocapitalismo adquire a feição da hipnose e da sugestão social.


À medida que ocorre o enfraquecimento da consciência de classe, temos o enfraquecimento do ego social. Nas condições históricas do capitalismo tardio e da crise estrutural do capital, o enfraquecimento do ego social leva, por um lado, à emergência do narcisismo e do particularismo social e, por outro, à potencialização da manipulação entendida como uma forma de hipnose social, impulsionada pelos aparatos da mídia e de reprodução da ordem liberal-burguesa.


À medida que as sociedades liberais se tornaram cada vez mais midiáticas no decorrer do século XX, desde o advento do cinema e do rádio após a Primeira Guerra Mundial (1918), mas principalmente com a televisão na década de 1950 e, posteriormente, com a Internet e as redes sociais no final do século XX e começo do século XXI, a manipulação social tem sido favorecida, operando quase como um "Dr. Mabuse" social que opera cotidianamente a propaganda comercial, política e cultural a serviço dos valores da ordem capitalista. Um dos maiores cineastas do século XX, Fritz Lang (1890-1976) produziu uma clássica trilogia sobre o psicanalista Dr. Mabuse, mente criminosa e hipnotizador, símbolo enigmático do poder do capital no século XX. Lang viveu o ascensão queda o nazismo na Alemanha, e viveu a ascensão e cris do americanismo imperialista. O seu último filme foi "Os mil olhos do Dr. Mabuse" de 1960.





A carga da manipulação - que fez Lukács criar o termo "capitalismo manipulatóio" - debilitou a sociedade civil e a esfera pública nas sociedades burguesas, capturadas pelos interesses empresariais e do poder do capital. É por isso que podemos dizer que o século XX foi o século de degradação do ego! (é muito interessante o documentário de Adam Curtis, "O século do ego").


Em suma, o hipnocapitalismo é o capitalismo da hipnose social, no qual o "enfraquecimento do ego social", somado ao crescimento da manipulação social, tem contribuído para a dessubjetivação de classe e para a emergência do sujeito neoliberal.


Assim, o paralelo que estamos fazendo entre manipulação social e hipnose adquire uma interessante relevância heurística. Vejamos:


A psicanálise afirma que personalidades com o ego enfraquecido são mais suscetíveis à hipnose.


Por exemplo, Sigmund Freud, Sandór Ferenczi e Erich Fromm estudaram a questão da hipnose - principalmente para Ferenczi em que a hipnose era uma das principais técnicas terapêuticas utilizadas por ele em seus tratamentos. Ferenczi acreditava que a hipnose poderia ser uma forma eficaz de tratar traumas e neuroses, permitindo que o paciente acessasse memórias e sentimentos reprimidos de uma forma mais direta e profunda.


Num estudo de 1936 intitulado "Estudos sobre Autoridade e Familia" [Studien uber Autoritat und Familie], M. Horkheimer, E. Fromm e H. Marcuse fizeram uma pesquisa pioneira visando entender as bases sociometabolicas do nazifascismo. Neste estudo, a partir das reflexões de Fromm podemos inferir elementos para entender a operação da manipulação enquanto hipnose social.


Na situação hipnótica, é possível eliminar completamente a capacidade normal de julgamento e vontade de uma pessoa. De fato, é isso que o capital faz com as "massas". (entendemos as "massas" como sendo o coletivo de classe desmembrado, a sociedade amorfizada - pela repressão política, como ocorreu no nazifascismo; ou pelo poder do mercado enquanto consumismo). A sociedade do capitalismo liberal mais desenvolvido é a "sociedade de massa" (ou da produção em massa - de mercadorias).


Diz Fromm que o ego da pessoa hipnotizada fica subordinado à vontade e julgamento do hipnotizador. Podemos dizer: a manipulação social reforça a conformação social da sociedade burguesa. O ponto principal salientado por Fromm é que o hipnotizado se sente fraco, e o hipnotizador se sente incomparavelmente mais forte e poderoso. Assim, pode-se dizer que o poder do capital é inversamente proporcional à impotência social; e, portanto, às forças da democracia social, que foram esvaziadas pelo avanço das "sociedades de massas" (é possivel ter verdadeiramente democracia nas "sociedade de massas"?) .


Fromm diz algo interessante: o fator decisivo é sempre que a pessoa hipnotizada seja colocada no papel da criança pequena que é subordinada ao "grande" sem vontade. Assim, a manipulação social imbeciliza as massas, isto é, as torna infantis. As sociedades do hipnocapitalismo são as sociedades de Homer Simpson.


Sandor Ferenczi observou que na hipnose, o medo ou o amor pelo hipnotizador é a base emocional decisiva para o efeito hipnótico, ou seja, é mais o papel paterno ou materno que dá ao hipnotizador seu poder. “Sugerir e hipnotizar”, diz ele, “é a criação deliberada de condições sob as quais a tendência à fé cega e à obediência acrítica, que está presente em todo ser humano, mas geralmente reprimida pela censura – um resquício de amor erótico infantil, um medo dos pais – pode ser inconscientemente transferida para a pessoa que hipnotiza ou sugere".


Na verdade, o medo e o amor enquanto produção social - desde o medo da autoridade ao amor pelos ideais da burguesia (Liberdade, Ordem, Progresso, Consumo) - criam as condições psicossociais para a afirmação da tendência à fé cega e à obediência acrítica “inconscientemente transferida para a pessoa que hipnotiza ou sugere". Vale dizer, isso ocorre na medida em que o "ego social" se enfraqueceu, tornando as pessoas mais susceptiveis à prática da manipulação social. Foi isso o que aconteceu, por exemplo, no entre-guerras, na época da ascensão do nazi-fascismo; e aconteceu a partir da década de 1980, com a ascensão do neoliberalismo, o amor pelo mercado e o sociometabolismo da barbárie.


Erich Fromm reconheceu que Ferenczi forneceu uma indicação importante ao apontar o amor e o medo como condições para o surgimento e eficácia da situação hipnótica . Entretanto, ele discorda que exista uma tendência à fé cega que age como uma pulsão instintiva; e que em circunstâncias normais, é apenas reprimida. Fromm observou que o que acontece na hipnose, não é a erupção de uma inclinação reprimida, mas o “desmantelamento do ego” [der Abbau des Ichs].


Além disso, a atitude infantil em relação aos pais não é "transferida" para o hipnotizador no sentido de que este obtém sua função hipnótica porque ele é a figura paterna ou materna da pessoa hipnotizada. Em vez disso, o hipnotizador – diz Fromm - cria as mesmas condições sociometabólicas – por exemplo, de desamparo - que prevaleceram na infância do hipnotizado. Face à situação "infernal" que o hipnotizado passa a viver, e diante do poder tão intimidatório quanto amoroso e protetor do hipnotizador, a pessoa hipnotizada renuncia ao próprio ego.

Para a psicanálise, o ego desenvolveu-se para servir ao indivíduo como um muro na luta pela vida. Podemos dizer assim, que o "ego moderno" foi criado pelo processo de individuação da modernidade do capital caracterizada - vale dizer - pela oposição e luta de classe. Diz Fromm que quando o outro se mostra tão poderoso e perigoso que lutar contra ele é inútil; e a submissão é a melhor proteção; ou tão amoroso e protetor que a atividade do ego parece desnecessária, surge então, uma situação em que o exercício das funções do ego se torna impossível ou supérfluo - então o ego “desaparece”.


Assim, os regimes políticos autocráticos, por exemplo, tendem a debilitar o ego, tanto quanto as situações de proteção e amor em excesso (como o "amor de mãe"). Tanto num caso como no outro, a autonomia da individualidade [e da classe], é negada, sendo assim, subsumida – com violência ou com amor - ao poder exterior do capital.

Prosseguindo em suas interessantes reflexões, Erich Fromm observou que o "desmantelamento do ego" na hipnose vai tão longe que a função de percepção também pode ser completamente abolida, de modo que, por exemplo, diz ele, “a pessoa hipnotizada come uma batata crua com a sensação e a consciência de que um delicioso abacaxi foi servido a ela”.


Uma vez que a situação hipnótica foi efetivamente estabelecida e o ego foi amplamente desmantelado em todas as suas funções, então o conteúdo do que a pessoa hipnotizada deve acreditar ou sentir, não é tão importante. Isto é, não interessa no que ela acredita - se na existencia de Discos Voadores; ou se ela acredita que Jair Bolsonaro vai ser aquele que vai salva-la de sua situação de desgraça social.


A crença que o capitalismo é a solução dos problemas sociais é produto do processo de hipnose social operado pelos dispositivos midiáticos – incluindo, conteúdos escolares e discursos políticos. Um ego enfraquecido está submetido de forma flagrante aos ditames das pessoas mais forte e poderosa, ou ainda, das amorosa e protetoras.


Na vida cotidiana, tais situações de proto-hipnose aparecem por exemplo, de modo menos abrangente, na relação do médico com o paciente, do oficial com o soldado, do vendedor habilidoso com o cliente, da celebridade com o homem médio da grande multidão.


Para os pesquisadores do Instituto Social de Frankfurt que publicaram em 1936 o estudo, o caso socialmente mais importante de relacionamentos do tipo hipnose entre pessoas é o relacionamento com a autoridade em geral. Por isso, para entender a ascensão do nazifascismo, foram estudar a autoridade na família, o grupo social de origem.

O conceito de hipnocapitalismo resgata a necessidade tanto da critica da economia politica quanto da critica da psicanálise enquanto economia politica da subjetividade burguesa.


A psicanálise tradicional não tem mais eficácia na abordagem da problemática histórica da manipulação social- pelo contrário, a psicanálise e psicologia social tornaram-se ideologias da ordem do ego enfraquecido.


As reflexões de um autor como Herbert Marcuse – mais do que Erich Fromm – pode ser interessante no desenvolvimento do conceito de hipnocapitalismo, principalmente no que diz respeito à manipulação como hipnose social nas condições histórics do "ego enfraquecido" pelos dispositivos do principio de realidade do capitalismo total.


Dele indicamos os livros "Eros e Civilização" (de 1955) e "Ideologia da Sociedade Industrial: O homem unidmensional" (de 1964). Destacamos também o ensaio "A obsolescencia da psicanálise", publicado no volume 2 da coletânea "Cultura e Sociedade".


O capitalismo social-liberal ou o capitalismo hiperliberal – de hoje - reprime (captura/manipula) as individualidades e a subjetividade em prol da conformidade com as normas e valores dominantes. Nunca o poder do fetichismo foi tão intenso, o que explica porque, apesar da profunda crise social do capitalismo, a ordem social burguesa se reproduz à todo vapor - mesmo indo direto para o abismo.


A cultura do hipnocapitalismo é a cultura do narcismo, que é o próprio sintoma do ego enfraquecido. Pessoas narcisistas tem o ego enfraqecido. A cultura do novo capitalismo neoliberal produz numa dimensão inédita, um excesso de estímulos e informações, paixões e imagens, que levam a uma sobrecarga cognitiva e a uma sensação de alienação do self.


O que é importante é investigar como foram produzidas as condições histórico-politicas que levaram ao "desmantelmento do ego" ou alienação do self (o adormecimento da consciência critica e a sugestão e hipnose social pelos valores da ordem burguesa).


Herbert Marcuse se dedicou a fazer a crítica do metabolismo social do capitalismo liberal que tinha na sociedade industrial dos EUA sua expressão suprema. Isto vale ainda mais hoje para a "sociedades pós-industrial" do neoliberalismo. A cultura do capitalismo liberal – e no caso do Brasil, sociedade liberal de extração colonial-escravista - produz uma falsa liberdade que mantém – hoje mais do que nunca - a opressão, com as normas e valores dominantes abraçados pelas pessoas hipnotizadas pelos dispositivos midiáticos, inibem o desenvolvimento do self.


Para além da captura da subjetividade, o hipnocapitalismo manipula aquilo que denominamos de “complexos do self” (a subjetividade, intersubjetividade e a produção da individualidade social). O poder do "princípio de realidade" na era do hipnocapitalismo é muito maior do que no passado por conta dos processos sociais que enfraqueceram o ego.


Por isso, a ditadura do desempenho e da performance social postos pelo neoliberalismo. Ao ser incapaz de fazer a critica das estrutras de poder do capital como sistema global do metabolismo social estranhado, a psicanalise tradicional se rendeu à ordem do hipnocapitalismo e tal como a economia política, serve à reprodução do neoconformismo neoliberal e no limite, ao sociometabolismo da barbárie.






bottom of page