Para que a discussão da nova subjetivação neoliberal que caracterza o hipnocapitalismo consiga ir além da miséria do psicologismo, é preciso implica-la com a crítica da economia politica e a crítica do Estado político do capital na era da sua crise estrutural (o Estado neoliberal). É o que tentaremos fazer nesta postagem.
No começo da década de 1970, a década da primeira recessão global após a Segunda Guerra Mundial, delinearam-se os traços do metabolismo social da nova temporalidade histórica do capital. A grande crise capitalista de1973-1975, expôs a profunda crise do Estado capitalista.
Na década de 1980, várias instâncias da vida social foram reestruturadas.
Por exemplo, na política, tivemos o neoliberalismo; na produção tivemos as novas tecnologias digitais/informacionais e a forma de gestão toyotista; na economia, a financeirização da riqueza capitalista e o poder do capital financeiro; no mundo do trabalho, a nova divisão internacional do trabalho e a forma flexível da precariedade salarial; na cultura, o pós-modernismo, o ethos neoliberal, as políticas de identidade e mudanças na forma de subjetivação. Aprofundou-se o debilitamento do sindicalismo e a crise dos partidos socialistas e comunistas por conta do desmonte da objetividade da classe operária tendo em vista o novo (e precário) mundo do trabalho. O imperialismo dos EUA se reordenou e contra-atacou no plano geopolítico visando destruir a URSS.
Intensificou-se a manipulação social a disseminação da visão de mundo do pós-modernismo, dos novos valores da ordem neoconservadora e como resultado, o sociometabolismo da barbárie.
A crise do Estado capitalista ou da velha ordem liberal na década de 1970 foi “resolvida” com a constituição da nova materialidade política do capital: o Estado neoliberal, o Estado ampliado (sociedade política e sociedade civil).
A produção da sociedade civil neoliberal foi feita por meio das novas formas de subjetivação capitalista: o sociometabolismo da barbárie.
O conceito de “crise estrutural do sistema do capital” tem uma função heurística pois a partir dele explicamos a fenomenologia da nova ordem do capital com a ascensão do capitalismo neoliberal.
A crise da década de 1970 não se tratou de mais uma crise capitalista – é por isso que é a crise estrutural. Ao adotarmos o conceito de “crise estrutural do sistema do capital”, operamos um curto-circuito temporal.
Enfim, o futuro não será mera continuidade do passado.
O porvir está prenhe de manifestações qualitativamente novas que expõem a nova era do capitalismo global ou do capitalismo manipulatório na sua forma extrema: o hipnocapitalismo.
Com a crise do Estado capitalista (ou a crise do Estado do liberalismo social), surgiu - como produto da luta de classes - uma nova forma política no interior da qual a dominação do capital iria se desenvolver: o neoliberalismo.
O Estado neoliberal é o Estado da nova precariedade salarial; e o Estado da dessubjetivação de classe (ou do desmonte da consciência de classe); é o Estado da “mais-manipulação” ; do ethos do particularismo e da violência simbólica (ou da ultraviolência); o Estado neoliberal é o “Estado do mal-estar” e da insegurança social. Enfim, é a materialidade política a partir do qual se constitui o novo poder do capital e da nova forma de subjetivação estranhada.
Os conceitos de crise estrutural do sistema do capital e de sociometabolismo da barbárie, nos remetem à crise permanente do “Estado de Bem-estar” e das democracias representativas) por conta da crise fiscal e da crise de legitimação.
Um aspecto da crise estrutural enquanto crise social crônica, é a crise da juventude proletária: o “precariado”.
Com o capitalismo neoliberal da década de 1980, a crise da juventude se manifesta – por exemplo - no drama do “precariado” considerado por nós como sendo a camada social do proletariado jovem altamente escolarizado e inserido em situações de desemprego e trabalho precário. No fundo, a crise da juventude é a crise da futuridade, sendo isto um aspecto importante do sociometabolismo do capital
A crise do liberalismo social é a expressão fenomênica da crise do Estado capitalista fordista-keynesiano face às contradições abertas pelo novo tempo histórico.
A crise estrutural do sistema do capital suprimiu a base material de legitimidade (e de eficácia) das instâncias ideopoliticas do liberalismo social. Como resultado histórico da derrota da classe operária na década de 1970, o neoliberalismo tornou-se governo no Reino Unido (em 1979) com a primeira vitória eleitoral de Margaret Thatcher, do Partido Conservador; e nos EUA (em 1980) com a primeira vitória eleitoral de Ronald Reagan, do Partido Republicano. A partir daí constituiu-se efetivamente o Estado capitalista neoliberal.
Foi a crise estrutural do sistema do capital nas décadas de 1960 e 1970 colocou a necessidade da nova subjetivação capitalista.
O discurso da velha ordem liberal do capital se baseava na “ordem natural das coisas” e nas imposições de uma exterioridade para a legitimação do poder burguês (por exemplo, a Igreja tradicional e o Estado social burocrático).
Entretanto, na medida em que funciona como força de conservação do Estado capitalista, a ideologia liberal foi obrigada a acompanhar o desenvolvimento contraditório do modo de produção capitalista, adaptando-se às mudanças mais profundas da materialidade do capital que ocorreram com o desenvolvimento das forças produtivas e das relações sociais de produção; e inclusive, na correlação de força entre as classes sociais.
A crise da velha subjetivação do liberalismo social significou a necessidade de se constituir a nova forma de subjetivação liberal adequada à era da crise estrutural do sistema do capital.
Podemos distinguir diferenças entre o liberalismo clássico, o liberalismo social e o neoliberalismo no que diz respeito às formas de subjetivação.
O elemento essencial que constitui as formas de subjetivação é aquele que diz respeito à posição do sujeito face à contradição essencial entre capital e trabalho.
Esta é a forma metodológica de fazer a psicologia social e a psicanálise sair da visão ideológca do psicologismo, inscrevendo-a assim, no horizonte da crítica da economia politica do capital.
A ideologia liberal surgiu a partir da contradição material objetiva entre a aparência e a essência do modo de produção capitalista.
Na esfera da circulação mercantil, os homens são vistos como indivíduos iguais, portadores de propriedade, livres e racionais, mas na verdade, eles pertencem a diferentes classes sociais, inerentemente desiguais, que sustentam relações sociais que se reproduzem cegamente e infinitamente.
Portanto, a contradição crucial do pensamento liberal está enraizada no próprio modo de produção capitalista.
Na aparência da circulação, trabalhadores e capitalistas trocam equivalentes, mas abaixo dessa superfície, em sua essência, encontra-se o contrário.
A reprodução reiterada da relação social de produção mostra o fundo do sistema, ou seja, que o trabalho morto se nutre do trabalho vivo e que aquela relação era verdadeiramente uma relação entre desiguais, uma relação por meio da qual a classe dos capitalistas apropria-se da riqueza produzida pela classe dos trabalhadores.
O LIBERALISMO CLÁSSICO
O liberalismo clássico caracterizou-se pela defesa da liberdade de comércio, do mercado livre – especialmente da compra e venda da força de trabalho – e da estabilidade do padrão monetário. Ela afirmou o caráter espontâneo beneficente do sistema econômico capitalista.
A “mão invisível” afiança que há uma coincidência do interesse individual com o interesse geral e se constitui, por isso, numa justificativa para restringir ao máximo a ação do Estado (este deve prover apenas infraestrutura, defesa, segurança e justiça), deixando plena liberdade de ação aos interesses privados.
O liberalismo clássico se atém ao momento formal de relação entre trabalho assalariado e o capital, afirmando e acentuando o aspecto positivo e superficial do modo de produção capitalista (seu primeiro momento) para bloquear uma compreensão profunda de sua natureza (ou de seu segundo momento).
O LIBERALISMO SOCIAL
O liberalismo social surgiu historicamente quando a aparência do modo de produção é desmentida na prática histórico-social (a luta de classe), quando se torna perigoso para os capitalistas aferrarem-se à mera forma da relação social de produção; quando a conservação do sistema se torna ameaçada pela radicalidade das lutas sociais de classe e pelas crises econômicas que as tornam ainda mais profundas (as décadas de 1930 e década de 1940).
Então, nestas condições históricas, a ideologia não pode mais se sustentar apenas na aparência da relação social; ela precisa agora, de um certo modo, ter em conta a própria essência dessa relação.
A fórmula que emerge da ideologia do liberalismo social consiste em apresentar a essência, não como essência, mas como diferença:
há duas forças sociais em confronto e elas são distintas - uma delas é mais fraca do que a outra; uma delas consome insuficientemente e a outra, poupa demais; uma delas não encontra ocupação e a outra não está criando ocupações em número suficiente para que seja mantida a paz social.
Assim, a essência do capitalismo não aparece nessa visão política, como exploração, mas como má-repartição da renda e da riqueza, como diferença e desigualdade que o reformismo pode modificar.
O liberalismo social caracterizou o Estado fordista-keynesiano ou social-democrata após a Segunda Guerra Mundial. Nesse caso, cabe ao Estado atuar como força equilibradora. A política econômica keynesiana e a política social-democrática, a partir dos anos 30 do século XX, passaram a ocupar o centro do cenário.
A realidade da grande indústria capitalista desenvolvida e a luta de classe e o movimento operário na primeira metade do século XX, minaram a aparência isonômica do sistema (a desigualdade aparecia não enquanto contradição, mas enquanto diferença).
O otimismo liberal clássico transformou-se no precavido liberalismo social: a mão invisível do mercado – reconheceu-se – precisa-se até certo ponto do poderoso braço do Estado, que deve regular ativamente a atividade econômica. A comunidade ilusória do Estado capitalista aparece como comunidade econômica capaz de garantir o bem-estar de cada um: o “compromisso fordista”.
O NEOLIBERALISMO
Para o neoliberalismo, o Estado deve ser um agente econômico ativamente passivo. Deve ser pois um Estado que cria ativamente as condições para a acumulação do capital, que protege os monopólios das crises econômicas, que enfraquece o poder dos sindicatos de trabalhadores assalariados, que despoja os trabalhadores da seguridade social, que privatiza as empresas públicas, que transforma a oferta de bens públicos (como as estradas, os portos, etc.) em serviços mercantis; que não só levanta os obstáculos ao funcionamento dos mercados e das empresas, mas é capaz de criar as condições para que estas operem de modo lucrativo – afinal, vive-se na era da queda da taxa de lucratividade do capital (a grande crise capitalista de meados da década de 1970 foi uma crise de lucratividade).
Isto acima é a particularidade histórico-concreta do neoliberalismo ao destacar-se do liberalismo social.
No liberalismo clássico, o Estado nunca pode comparecer como agente econômico. No neoliberalismo, o Estado deve preencher ativamente os vazios da malha financeira e produtiva, mas deve fazê-lo, sempre que puder, não por meio de empresas próprias, mas preferencialmente adjudicando as atividades econômicas complementares, por meio de contratos de gestão, às empresas privadas (as Parcerias Público-Privadas).
Tal como o liberalismo social, o neoliberalismo reconhece a contradição entre capital e trabalho assalariado, ainda que também, de modo mistificado.
Entretanto, diferentemente do liberalismo social, a contradição e a disposição do conflito social, deve ser necessariamente bloqueada por meio da “dessubjetivação de classe”.
Assim, a contradição entre capital e trabalho tem de ser objetivamente neutralizada por meio da política (subjetivação) de “fragmentação de classe” e do debilitamento social e político das instituições de defesa do trabalho (partidos e sindicatos de classe).
A nova forma de legitimação politica (e de subjetivação social) do capitalismo neoliberal ocorre pela “mais-manipulação” e pela construção de uma ordem moral - e não apenas ordem natural – capaz de instituir um novo consentimento a ser buscado “de dentro” do indivíduo e não mais através de dispositivos “exteriores” e seus braços poderosos (Deus e Estado-Providência).
Assim, a ordem neoliberal busca consentimento por meio da “moral do mercado” e da concorrência (e competição) exacerbada, sedimentando novas formas de subjetivação estranhada.
Criou-se assim, um novo ambiente social capaz de fabricar o sujeito neoliberal como “neosujeito” ou sujeito competitivo - que se distingue do sujeito produtivo da era do liberalismo social. A carga psíquica do novo ethos social e da “mais-manipulação” é elevada, pois o sujeito competitivo sofre com ansiedade e depressão.
Para adaptar-se subjetivo e pulsionalmente, o sujeito neoliberal se coloca no limiar da “perversão comum”. Na verdade. O perverso torna-se a regra subjetiva para a adaptação à ordem neoliberal.
A manipulação extra do hipnocapitalismo (a “mais-manipulação”), fabricou a hegemonia neoliberal e produziu o conformismo moral adequado às condições da concorrência capitalista. Os indivíduos foram reduzidos ao “estado de particularidade” (o hipnocapitalismo é o “capitalismo do sono” – o sono do pensamento negativo ou da consciência de classe).
Mas o hipnocapitalismo é também o capitalismo da hipnose social - tal como vimos no post anterior.
Conformar-se moralmente significa consentir.
O neoliberalismo produziu “consentimentos espúrios”, manipulando afetos tais como o medo e a culpa. É o novo conformismo do politicamente correto e da fábrica do vitimismo social e fragmentação do coletivo do trabalho (o identitarismo como a política da fragmentação).
As condições da sociabilidade laboral no capitalismo global (o capitalismo da superexploração do trabalho) são deveras propicias para a produção do medo (e da culpa).
A insegurança salarial, os bad jobs e o desemprego em massa, permitem que o sistema do “mais-desempenho” (Marcuse) cultive os afetos mais regressivo da alma humana: o medo e a culpa. Ao mesmo tempo, deixado a sua própria sorte, o neosujeito competitivo sofre com o fracasso social.
O "sujeito competitivo" tornou-se ansioso e depressivo tendo em vista que a nova ordem neoliberal o condenou a competir e nem sempre ser bem-sucedido. Caso não consiga ter sucesso e bater a Meta, o sujeito competitivo está condenado a auto-culpabilizar-se.
No passado, o liberalismo social fez a revelação progressiva da não-verdade da identidade entre capital e trabalho. A desigualdade aparecia não enquanto contradição, mas enquanto diferença. O liberalismo social substituiu a igualdade abstrata do liberalismo clássico, onde o Estado era árbitro entre iguais, pela diferença entre as partes.
A luta de classe e o conflito social obrigaram a interversão da identidade no seu contrário e a “atenuação” da contradição em diferença. Na verdade, a diferença é a categoria central do reformismo.
O neoliberalismo – tal como o liberalismo clássico e o liberalismo social - mistifica a contradição entre as classes. E do mesmo modo que o liberalismo social, a desigualdade entre as partes não aparece enquanto contradição, mas sim, enquanto diferença.
Mas a regulação da diferença no neoliberalismo não é a mesma da regulação do liberalismo social – que era uma regulação estatal.
O neoliberalismo “regula” a diferença desregulamentando e subvertendo a materialidade do conflito de classe, enfim, bloqueando a luta de classe por meio da “dessubjetivação de classe”.
Eis, portanto, é a importância do conceito de “dessubjetivação de classe” para o entendimento do processo de subjetivação neoliberal.
É o esvaziamento da luta de classe que faz operar o sociometabolismo da barbárie.
O Estado neoliberal é aquele em que a nova ordem deve ir além do Estado político “exterior” do velho liberalismo, instalando o princípio da dominação capitalista, no interior de cada indivíduo por meio da “captura” da subjetividade.
A dessubjetivação de classe e a subjetivação neoliberal operou-se historicamente por meio de dois movimentos:
(1) a destruição da consciência de classe e da perspectiva da luta entre capital e trabalho, debilitando deste modo, o ideal (e a prática social) do “coletivo” - foi o que ocorreu nas últimas décadas da globalização capitalista, com a (1) reestruturação produtiva que debilitou os sindicatos e partidos comunistas e a (2) degradação política e ideológica de sindicatos e partidos social-democratas que renunciaram à luta de classes e entregaram-se à concertação social com o capital.
(2) a disseminação do sociometabolismo da barbárie que se caracteriza pela redução do indivíduo ao “estado de particularidade” (o particularismo).
Nesse movimento de subjetivação neoliberal, o papel da mídia foi fundamental enquanto meio de comunicação de massa. Com as novas tecnologias informacionais, a técnica de manipulação neoliberal exacerbou seu poder de se utiliza das “paixões e das imagens” visando fabricar a nova subjetivação capitalista.
O “hipnocapitalismo” inaugurou assim, por meio da dessubjetivação de classe, o esvaziamento da luta de classe, o novo princípio de subjetivação social.
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