O sindicalismo brasileiro está em declinio há tempos - pelo menos desde a década de 1980 quando teve seu climax social. A partir da década de 1990, tendo em vista a ofensiva neoliberal, entra em franco declínio histórico acompanhando o crepusculo do processo civilizatório no Brasil. O declinio histórico do sindicalismo brasileiro é resultado de sua incapacidade estrutural em enfrentar os desafios da nova objetividade do mundo social do trabalho e da nova froma de subjetivação neoliberal levada a cabo pelo capital.
De crise em crise mal-resolvida, o sindicalismo brasilerio está em franco declinio histórico. O Brail perdeu um importante protagonista de luta social e política nas ruas.
Primeiro, o novo (e precário) mundo do trabalho e a fragmentação do proletariado debilitaram as bases sindicais das organizações privadas e organizações públicas. Incapazes de adotarem uma nova forma de organização das bases dispersas pelo desemprego em massa e informaidade social, o sindicalismo sucumbiu à ineficácia da burocracia outrora alimentada pela contribuição sindical. Rendidos à estrutura sindical corporativista, burocratizada e verticalizada, focada no "egoísmo de fração", os dirigentes sindicais, envelhecidos e bitolados por práticas sociais e políticas historicamente anacrônicas, demonstraram a incapacidade de inovar no sentido de construir formas organizacionais e polítics de enfrentamento de classe condizentes com a nova era da ofensiva neoliberal do capital.
Segundo, face à ofensiva ideológica do capitalismo neoliberal, o sindicalismo brasileiro rendeu-se - pelo menos desde a década de 1990, à lógica do neocoprorativismo e da concertação social. Sob a hegemonia do PT rendido à perspectiva liberal, os dirigentes sindicais trocaram a ideologia da luta de classe pela ideologia do sindicato-cidadão e do diálogo social capital-trabalho. Abraçaram (e alimentaram) a ideologia liberal do identitarismo, verdadeira "máquina de dessubjetivação de clase". Mal sabiam que estavam cavando a própria sepultura na medida em que - no decorrer do processo de crise do capitalismo brasileiro - se fortaleceu o poder do capital e efetuou-se o desligamento da luta sindical da luta social mais ampla da classe do proletariado.
Foi uma decisão política dos dirigentes sindicalistas do PT - o partido hegemonico no movimento da classe trabalhadora brasileira - render-se à estratégia neocorporativista de desligar-se dos movimentos sociais e focar-se nas negociações coletivas por categoria e por empresa. Não se fez a disputa politica e ideológica na sociedade indo além do ethos corporativo que impregna historicamente a organização social brasileira. O sindicalismo brasileiro escolheu fazer apenas a luta economicista deixando de lado a luta politica, ideológica e cultural na perspectiva da classe.
De crise em crise, incapaz de enfrentar de forma eficaz a ofensiva neoliberal do capital, o sindicalismo brasileiro encontra-se hoje em 2023, em declínio histórico, e qual um doente terminal sobrevive às custas do aparelho do Estado neoliberal. Os sindicalistas frequentam mais os corredores do Poder do que as ruas e as organizações de base.
É o declinio do sindicalismo brasileiro que explica - em parte - o esvaziamento das ruas.
Vejamos algumas reflexões sobre a crise estrutural do sindicalismo brasileiro. É o que faremos nesta série de postagens sobre a crise e declinio do sindicalismo brasileiro. É um esforço para entender por que o povo sumiu das ruas no Brasil.
Antes de mais nada, é fundamental ter uma perspectiva histórica.
A história é a mãe da vida social e política. O Brasil precisa entender como chegou à situação de profunda crise (e declinio) civilizatório. Sem o movimento das ruas não conseguiremos sair do "buraco" ou do "lamaçal" da situação de barbárie social.
Em 2022, completaram-se trinta anos desde a defesa da minha dissertação de mestrado na UNICAMP, intitulada "Marx, Engels e os limites do sindicalismo"[1]. O tema da crise do sindicalismo tem sido uma constante em toda a minha trajetória intelectual. Discutir os limites e o declínio do sindicalismo tornou-se uma questão recorrente nas sociedades neoliberais. Essa discussão diz respeito à presença, visibilidade e efetividade da classe trabalhadora na vida social, bem como à sua capacidade de fazer política no século XXI.
No entanto, a ofensiva do capital ao longo de trinta anos de capitalismo neoliberal no Brasil foi avassaladora, dissipando a objetividade do sindicalismo corporativo. Categorias assalariadas, que antes possuíam capacidade de luta e confrontação de classe, tiveram seu poder de barganha sindical e de negociação coletiva consideravelmente enfraquecido.
Mas não é só isso: a crise do sindicalismo também implica na perda da capacidade das importantes categorias assalariadas de construir uma agenda política de luta sindical. Essa agenda deve representar não apenas interesses corporativos, mas também as demandas da categoria e da classe trabalhadora como um todo.
Há pouco mais de trinta anos, na década de 1980 no Brasil, falava-se em "classe trabalhadora". O surgimento do novo sindicalismo na década de 1970 trouxe consigo a perspectiva da luta da classe trabalhadora contra o arrocho salarial e em favor das liberdades democráticas. É importante lembrar que a criação da CUT e do PT ocorreu durante o processo de acumulação de forças na luta de classes, não se limitando apenas às lutas identitárias e fragmentárias dos movimentos sociais (embora isso não impedisse que a luta de classes também abarcasse, por exemplo, a luta dos negros e das mulheres).
Houve um grande aumento do sindicalismo e do associativismo. A década de 1980 pode ser considerada a “década do coletivismo” (1979-1980), pois a sociedade brasileira estava se reconstruindo como “sociedade civil” por meio da luta pela redemocratização - que era efetivamente uma luta social-coletiva. O metabolismo social do Brasil na década de 1980 permitiu a experiência de classe, a partir da qual surgiram a organização dos sindicatos e dos movimentos sociais.
A classe operária ainda mantinha o espírito de rebeldia e de confronto de classe. Por exemplo, a tese de doutorado de Ricardo Antunes, um dos proeminentes analistas do mundo do trabalho no Brasil, foi lançada em livro em 1988 e intitulou-se “A rebeldia do trabalho: O confronto operário no ABC paulista – As greves de 1978-1980". Na medida em que o sindicalismo expressava o movimento da classe, Antunes foi prolifico em reflexões sobre o sindicalismo brasileiro. Inclusive, o sociólogo brasileiro projetou-se como um analista perspicaz do sindicalismo da luta de classes com o livro da “Coleção Primeiros Passos”, “O que é o sindicalismo”, de 1980. Não deixa de ser sintomático que o livro tenha ido uma grande recepção na medida em que ele expressava o "Zeitgeist" da década do coletivismo[2]. Entretanto, na década de 1990, o refluxo do movimento sindical classista, a burocratização do PT e da CUT, afastaram cada vez mais Antunes das reflexões sobre o sindicalismo brasileiro. No livro “Adeus ao trabalho? : Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho”, de 1995, Antunes dedicou o último capítulo à reflexão sobre o sindicalismo brasileiro (“Mundo do trabalho e Sindicatos na Era da Reestruturação Produtiva: Impasses e Desafios do Novo Sindicalismo brasileiro”). Entretanto, no livro “Os sentidos do trabalho: Ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho” (de 1999), o tema do sindicalismo brasileiro está ausente.
Apesar da década de 1980 ter ficado conhecida como a "década perdida" para a economia brasileira devido à retração econômica da indústria, a indústria brasileira continuou a crescer nas décadas de 1970 e 1980, mantendo a objetividade de classe e a base orgânica de várias categorias assalariadas, como os metalúrgicos e bancários (a crise da dívida externa, a desindustrialização e o neoliberalismo alteraram o metabolismo social da classe trabalhadora a partir da década de 1990).
Na década de 1970 e 1980 uma geração inteira foi moldada com a perspectiva da luta social-coletiva. Vinte anos após o desastre histórico da ditadura militar (1964-1984), o Brasil renascia, e essa geração teve o privilégio de vivenciar sua juventude nos anos 1980, impregnada de valores coletivistas, republicanos e de militância social e política. Essa geração se diferencia, por exemplo, das demais gerações de jovens que se formaram na era do neoliberalismo, o que eu chamo de “geração neoliberal”.
Da “geração da redemocratização”, surgiram os últimos intelectuais públicos (e “intelectuais orgânicos”) no Brasil. A década de luta de classes e de luta pela redemocratização foi marcada pela fundação da CUT e do PT, a realização do CONCLAT[3], o Movimento das Diretas Já, a Constituinte de 1988, culminando com as eleições presidenciais de 1989. Naquele momento, o movimento operário e popular levou seu candidato para o segundo turno das eleições, concorrendo com a candidatura da Frente Brasil Popular (PT-PCdoB), Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
As eleições presidenciais de 1989 representaram o ápice da sociedade civil afluente, pois a candidatura da Frente Brasil Popular representava o sindicalismo, o associativismo (inclusive no setor público), as Comunidades Eclesiais de base (CEB’s) e as associações de moradores, enfim, uma cultura coletiva pulsante que, a partir da base, colocou no horizonte a ilusão de futuro (a “Nova República”).
Mas fomos derrotados.
A derrota eleitoral (e política) da Frente Brasil Popular em 1989 marcou o início da nova tragédia histórica brasileira - depois da tragédia da ditadura civil-militar (de 1964 a 1984), a tragédia do neoliberalismo (1990-...). Na verdade, o processo eleitoral de 1989, que derrotou o candidato da Frente Brasil Popular, foi um golpe de manipulação midiática perpetrado pela TV Globo a favor do candidato do PRN, Fernando Collor de Mello. Esta foi a maior derrota histórica da classe trabalhadora no Brasil depois do Golpe Civil-Militar de 1964.
O neoliberalismo foi tão nocivo para o mundo do trabalho (e do sindicalismo) no Brasil quanto a autocracia civil-militar instaurada depois da derrubada do governo João Goulart em 1964. O início da era neoliberal marcou o processo complexo de ofensiva do capital e reposição capitalista no Brasil (o globalismo neocolonial). Esta perspectiva histórico-crítica é fundamental e necessária caso queiramos pensar o sindicalismo brasileiro a partir da ciência histórica materialista e dialética. É preciso fazer a reflexão a partir de um processo histórico mais amplo para que possamos entender como chegamos até aqui, incluindo – por exemplo - a chegada de Jair Bolsonaro ao governo em 2018. Isso é importante para termos uma perspectiva de futuro.
No próximo post, continuarei refletindo sobre a crise (e o declínio) histórica do sindicalismo brasileiro.
NOTAS
[1] Publicada em livro dez anos depois, em 2003, pela Editora Praxis com o título “Limites do sindicalismo: Marx, Engels e a crítica da economia política” (ALVES, 2003). A tese do livro era que a crítica (ou a percepção dos alcances e limites) do sindicalismo era parte da crítica marxiana da economia política. Portanto, na medida em que Marx desenvolveu a sua crítica da economia política ele fundamentou efetivamente os alcances e limites da forma-sindicato e a necessidade da ação politica face à dinâmica voraz do processo de acumulação do capital [2] “Zeitgeist” é uma palavra alemã que pode ser traduzida literalmente como "espírito do tempo" ou "espírito da época". Ele se refere ao clima cultural, intelectual e moral predominante em uma determinada era ou período histórico. [3] O CONCLAT (Congresso da Classe Trabalhadora) foi um evento histórico que ocorreu no Brasil em agosto de 1981. Foi uma iniciativa conjunta da Central Única dos Trabalhadores (CUT), que estava em processo de fundação, e de outras importantes entidades sindicais e movimentos sociais. O objetivo principal do CONCLAT era reunir representantes de diversas categorias trabalhistas para discutir e definir estratégias de luta contra o regime militar então vigente no país. O congresso foi um marco importante no processo de organização e fortalecimento do movimento sindical brasileiro. Durante o evento, foram debatidos temas como direitos trabalhistas, liberdade sindical, aumento salarial, democratização do país e a busca por uma sociedade mais justa. O CONCLAT foi também responsável pela criação de um documento histórico chamado "Plataforma da Classe Trabalhadora", que reuniu as principais reivindicações e propostas do movimento sindical naquele momento. Esse documento serviu como base para a atuação do movimento sindical nos anos seguintes e influenciou diretamente na construção da CUT como uma das principais centrais sindicais do país. O congresso representou um momento significativo de mobilização e união da classe trabalhadora brasileira, marcando o início de um período de intensa atuação e organização sindical no país.
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