Nesta penúltima postagem da série intitulada “O declínio do sindicalismo no Brasil”, iremos tratar – de modo introdutório - das mutações da materialidade do trabalho no Brasil neoliberal que alteraram de forma estrutural, a morfologia da classe trabalhadora brasileira. Na próxima - e última postagem - concluiremos a reflexão sobre o futuro do trabalho no Brasil a partir da identificação do Brasil neoliberal da década de 2020: Que País é esse? Que sociedade é essa ? Que Estado é esse? Só discernindo a morfologia social e o sociometabolismo da classe trabalhadora no Brasil de hoje é que podemos explicar as dificuldades de mobilização da classe trabalhadora brasileira depois de trinta anos de neoliberalismo.
Em primeiro lugar, a configuração do mercado de trabalho no Brasil da década de 2020 é muito diferente daquela do começo da década de 2000 e ainda, muito diferente daquela do começo da década de 1980. As mutações da estrutura social do trabalho foram bastante aceleradas. Nesse sentido, é importante entende-las no interior - sob uma perspectiva histórica - das três fases temporais do capitalismo brasileiro:
(1) o Brasil da sociedade agrária (do final do século XIX à década de 1920);
(2) o Brasil da sociedade urbano-industrial (da década de 1930 à década de 1980); e
(3) o Brasil da sociedade de serviços (da década de 1990 em diante), ou seja, a era do capitalismo global onde ocorreu a ofensiva neoliberal e se estabeleceu o novo e precário mundo do trabalho (a nova precariedade salarial e o sociometabolismo da barbárie).
Em pouco mais de um século o Brasil teve os três perfis sócio estruturais acima. A crise objetiva do sindicalismo está relacionada à terceira fase histórico-temporal - o Brasil da sociedade de serviços - na qual surgiram obstáculos estruturais significativos para a ação sindical corporativa:
(1) mudanças na estrutura ocupacional (como a desindustrialização e o surgimento da sociedade de serviços);
(2) transições sociodemográficas que afetam a estrutura familiar, identidade de gênero e envelhecimento da população;
(3) reestruturação tecnológico-organizacional que altera as formas de contratação salarial (como a terceirização), a tecnologia e a gestão, resultando no surgimento do regime de acumulação flexível;
(4) ataques à legislação trabalhista, à previdência social, à estrutura sindical corporativa e ao sistema judicial trabalhista, com a consolidação do Estado neoliberal (a sociedade política dominada pela hegemonia neoliberal);
e, por fim, (5) a erosão da consciência coletiva (a sociedade civil neoliberal), devido à ofensiva ideológico-cultural e à fragmentação ideopolítica da classe trabalhadora.
A "materialidade da classe" implica tanto a objetividade quanto a subjetividade da classe trabalhadora. A maioria dos analistas sociais do sindicalismo tende a enfatizar apenas as mudanças objetivas da classe, ou seja, o impacto da ofensiva neoliberal e da reestruturação produtiva do capital nos últimos trinta anos de neoliberalismo no Brasil (1990-2022). Na verdade, analistas do sindicalismo - incluindo os marxistas - têm a tendência de negligenciar o quinto ponto mencionado acima, não se dedicando a aprimorar as ferramentas crítico-analíticas para compreender a nova subjetividade do trabalho e a nova forma contingente da consciência das massas, caracterizada pelo sociometabolismo da barbárie. É isto que temos salientado há pelo menos 15 anos quando salientávamos o novo movimento do capitalismo manipulatório no Brasil.
É a partir do entendimento da nova subjetividade da classe que podemos compreender a desconstituição ou deformação da classe trabalhadora no Brasil, o que explica o declínio do sindicalismo corporativo na era neoliberal.
O neoliberalismo, como mencionado anteriormente, está intrinsecamente ligado aos processos de "dessubjetivação de classe" e à manipulação da subjetividade da classe trabalhadora. É dessa maneira que a classe é "deformada" e desconstituída como sujeito histórico.
A classe trabalhadora pode desaparecer enquanto sujeito histórico de massa É importante entender o processo de desconstituição da classe que vem ocorrendo desde pelo menos 1990, com o surgimento do novo sociometabolismo neoliberal.
É inegável que ocorreram mudanças objetivas na estrutura da classe trabalhadora, incluindo a diluição das bases sindicais devido à reestruturação produtiva, tanto no aspecto tecnológico quanto geográfico, o aumento do desemprego e o surgimento de um ambiente de trabalho novo e precário. No entanto, diante da investida do capital, foi feita uma escolha política meramente reativa, incapaz de enfrentar estrategicamente o avanço do capital.
Na realidade, o sindicalismo fez o possível dentro das limitações impostas pela estrutura sindical. No entanto, o abandono da luta de classes foi uma escolha política. O privilegiamento de estratégias neocorporativistas também foi uma escolha política. O afastamento das bases sindicais e da classe trabalhadora, a renúncia à formação sindical e política em prol da formação profissional e do discurso de mercado, tudo isso foi uma escolha política.
Durante os governos de Lula e Dilma (2003-2014), os sindicalistas ocuparam cargos no governo neodesenvolvimentista e acreditavam estar no Poder devido à implementação de políticas que valorizavam o salário mínimo e às negociações coletivas em curso com categorias assalariadas que possuíam poder de barganha e conquistavam ganhos salariais reais. As políticas negociadas para valorizar o salário mínimo foram de grande importância.
No entanto, o sindicalismo corporativo concentrou-se nos corredores do poder, sem engajar-se na batalha política e ideológica necessária para construir um poder social que fosse além da estrutura sindical corporativa e se baseasse na organização da classe trabalhadora.
Não devemos esquecer que os sindicalistas são filiados a partidos políticos. Os limites do sindicalismo tornaram-se evidentes pela falta de um partido efetivo que representasse os interesses da classe trabalhadora no Brasil, um movimento político que fosse capaz de construir um novo cenário político. A burocratização e o peso do longo período histórico do neoliberalismo - incluindo vinte anos de ditadura civil-militar! - tiveram um impacto significativo.
É importante reconhecer que esse não é apenas um problema brasileiro, mas sim um problema do sistema capitalista global, especialmente na periferia latino-americana que foi devastada pelo ciclo de regimes militares. Assim, a partir da década de 1990, o partido hegemônico da classe trabalhadora (o PT) burocratizou-se e submeteu-se à nova realidade política em desenvolvimento: o Estado neoliberal. O lulismo renunciou a disputar o EStado e construir um Projeto de Poder de classe no País. A escolha política pela conciliação de classe e a concertação social caracterizaram o movimento do PT e da CUT na década de 1990. É aí que encontramos a origem de nossa derrota histórica: o abandono da verdadeira política de classe - não apenas por parte dos sindicatos, mas principalmente pelo partido político que historicamente representou a classe trabalhadora.
A crise do sindicalismo brasileiro nos últimos trinta anos de neoliberalismo foi "ocultada" durante os governos de Lula e Dilma - exatamente porque a análise do sindicalismo negligenciou a dimensão subjetiva da crise, ou seja, a "captura" da subjetividade do trabalho e a submissão do sindicalismo à lógica do capital. Novamente, foi uma escolha política da lideranças politicas e sindicais da classe trabalhadora.
No entanto, a partir do golpe de 2016, os limites e o declínio do sindicalismo tornaram-se evidentemente manifestos com a nova ofensiva neoliberal - a Lei da Terceirização e a Reforma Trabalhista - e o aprofundamento do novo e precário mundo do trabalho fizeram com que a crise do sindicalismo expusse de fato, o seu declinio histórico enquanto agente social no Brasil neoliberal.
O ápice da crise do sindicalismo ocorreu durante a recessão histórica de 2015-2016, uma das mais profundas da história do Brasil - uma recessão econômica resultante das medidas de ajuste neoliberal adotadas pelo novo governo Dilma, eleito em 2014.
O desemprego e a informalidade são inimigos mortais do sindicalismo corporativo. Uma economia de baixo (ou nenhum) crescimento também representa um problema para o sindicalismo.
Paralelamente, o avanço do processo de desindustrialização minou as bases sindicais historicamente organizadas. Ao mesmo tempo, no plano da subjetividade da classe, persiste há décadas, a disseminação da cultura do egoísmo de fração em detrimento da consciência de classe. Uma coisa alimenta a outra: a crise economica e social reforça o defensivismo economicista que por conseguinte, impede que a classe trabalhadora apareça como protagonista de uma alternativa à política desastrosa do capital.
Pelo menos desde a década de 1990, a máquina de manipulação neoliberal, que gera barbárie social, foi um elemento sociometabólico não apenas contra o sindicalismo, mas contra qualquer forma de coletivismo e manifestação da perspectiva de classe. A ideologia identitarista permeia inclusive o discurso de lideranças politicas e sindicais de esquerda, reforçando a hegemonia do capital na sociedade civil neoliberal.
A Reforma Trabalhista de 2017 foi o "golpe final" para o sindicalismo brasileiro, pois retirou suas fontes de financiamento. A ofensiva do capital liderada por Michel Temer foi mais bem-sucedida em destruir o poder de negociação do sindicalismo brasileiro do que a ditadura civil-militar conseguiu em vinte anos de repressão à luta de classes (1964-1984).
A estrutura sindical, diante da crise do sindicalismo na era da ofensiva neoliberal, permaneceu inalterada por inércia, caracterizando-se por uma burocracia bastante resistente às mudanças - embora haja exceções.
A crise do sindicalismo, paradoxalmente, não resultou em uma crise dos sindicatos corporativos, cujo número chegou a aumentar na década de 2010. Assim, houve um crescimento no número de sindicatos. Pelo menos até 2017, existia uma verdadeira indústria de emissão de cartas sindicais, proporcionando acesso a recursos públicos provenientes das contribuições sindicais. Isso aumentou a fragmentação das burocracias sindicais, ao mesmo tempo em que a sindicalização e o poder sindical declinaram.
Por exemplo, em 2013, havia pouco mais de 10.000 sindicatos de trabalhadores no Brasil. Dez anos depois, o número cresceu para 17.448 em 2021 - um crescimento de aproximadamente 75%.
Nossa cultura sindical é conservadora e tradicionalista, investindo - em trinta anos de neoliberalismo -, muito pouco (ou quase nada) na formação de quadros políticos e ideológicos. Temos hoje um problema muito sério: as direções sindicais estão envelhecidas. Não se renovou a militância sindical.
Em trinta anos de neoliberalismo, tais deformações do sindicalismo corporativo só pioraram, dificultando o enfrentamento do novo e precário mundo do trabalho “uberizado”. Não se enfrentou - nas organizações privadas e organizações públicas - as importantes mutações na organização do trabalho e na base tecnológica. Na melhor das hipóteses, prevaleceu a pauta de reajustes salariais e avanços mínimos - até 2014 - nas condições de trabalho.
No plano da objetividade social, a crise do trabalho é a crise estrutural do projeto civilizatório do capitalismo brasileiro. O capital atrófico no Brasil encntrou seus limites internos. Com o neoliberalismo houve uma mudança no padrão de inserção do Brasil na divisão internacional do trabalho. Estamos diante de um processo largo de desindustrialização e de enxugamento das plantas industriais, de ampliação de áreas como serviços que nunca tiveram uma tradição histórica de organização sindical – isto é um processo global que não ocorre só no Brasil (a indústria de transformação que era 15,3% em 2000 caiu a 12,9% em 2022).
Mesmo nos governos neodesenvolvimentistas (2003-2014) não se conseguiu deter a desindustrialização. Na verdade, a burguesia brasileira - que nunca teve compromisso enquanto classe, com o desenvolvimento da Nação, hoje, sob a dominância de sua fração rentista-parasitária, se abstém de qualquer projeto de futuro para o País, procurando apenas preservar (e aumentar) a espoliação e exploração da força de trabalho e os ganhos do rentismo parasitário. O Estado neoliberal - sociedade politica e sociedade civil - apodreceu e putrefato, não encontra o seu coveiro: a classe do proletariado (e seus intelectuais orgânicos) sumiu há tempos. Reduzido à contingencia eleitoral, o projeto lulista do PT é "reduzir danos" e administrar o espólio da ordem carcomida do capital. Na melhor da hipótese, projetar uma nova inserção geopolítica..."ponto de Arquimedes" de uma "virada histórica" para além do Estado neoliberal ?.
Este é o ponto objetivo que deve ser levado em consideração na discussão do complexo de determinações objetivas e subjetivas da crise do sindicalismo que se arrasta há décadas.
Na próxima – e última postagem – iremos discutir o Brasil neoliberal: “Que País é esse?” É o que deveríamos estar discutindo com mais atenção: as profundas mudanças da materialidade do trabalho – objetivas e subjetivas – e fazer prospecções visando refletir o futuro do País.
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