A crise da civilização brasileira atual – que inclui a crise (limites e declínio) do sindicalismo - pode ser explicada pela tragédia histórica da derrota eleitoral (e política) de 1989 e, por conseguinte, pelos trinta anos de neoliberalismo no Brasil.
A formação do Estado neoliberal no Brasil - sociedade política e sociedade civil neoliberais – a partir de 1990, ocorreu por meio de uma processualidade histórica complexa.
No princípio, foi o “choque”. O neoliberalismo é a “doutrina do choque” - como diria Naomi Klein. O caos e a disrupção social funcionam como pressupostos de produção da nova ordem capitalista neoliberal, a "nova normalidade social" e a nova linguagem (novilingua) do mercado.
A primeira metade da década de 1990 foi permeada de disruptividade social.
Primeiro, a hiperinflação e o Plano Collor com a produção do desemprego por meio da recessão de 1990-1992 que abateu dez vez, o ânimo social.
Depois, a formação da nova ordem monetária do Plano Real (1994) rompendo com a temporalidade histórica passada da luta de classes da década de 1980.
Depois do choque da economia política e da disruptividade social, a força da conformação social se impôs de modo contundente face à exaustão das forças sociais de oposição. Adaptar-se à globalização neoliberal tornou-se o novo ethos social. O poder da Midia – mais uma vez – demonstrou sua força social no Brasil. Uma peculiaridade da modernidade do capital no Brasil é o poder efusivo da Mídia, aparato de manipulação construído nos vinte anos de regime militar. A esquerda politica ou sindical nunca disputou os meios de comunicação social, concessões públicas nas mãos de empresários e pastores neopentecostais.
O choque neoliberal do começo da década de 1990 teve seu ápice com o Plano Real e a estabilização monetária. Foi ele que elegeu em 1993 o candidato do PSDB, Fernando Henrique Cardoso, o artífice das reformas neoliberais no Brasil da década de 1990. Na verdade, a “Nova República” não nasceu em 1988, mas sim, dez anos depois, em 1994 com o Plano Real e o ethos reformista da burguesia brasileira sob hegemonia do capital financeiro (a fração da burguesia industrial debilitou-se na década de 1980 com a crise da dívida externa em 1981 e a desindustrialização).
A burguesia financeira brasileira levantou a bandeira da modernização por meio da Reforma Trabalhista, Reforma do Estado (privatizações e reforma administrativa) e Reforma da Previdência. Efetivamente, a burguesia neoliberal construiu o Estado à sua “imagem e semelhança” (não nos interessa discutir em detalhe o complexo de mudanças estruturais que fez nascer o novo Estado oligárquico-burgues no Brasil: o Estado neoliberal - isto merece outra série de posts).
No plano da morfologia do trabalho, a abertura comercial e o acirramento da concorrência, impulsionaram a reestruturação produtiva nas organizações privadas (inovações tecnológico-organizacionais na forma do novo discurso da gestão toyotista e da reordenamento territorial do trabalho com terceirizações e deslocalização industrial).
A força reestruturativa do capital atingiu de modo fulminante, os pólos mais organizados da classe trabalhadora.
A nova hegemonia burguesa se impôs pela força do mercado em reordenar o trabalho e a sociabilidade das classes e camadas sociais. Foram implodidos coletivos sociais, reestruturando-se os laços sociais. O poder de manipulação dos meios de comunicação de massa operou a dessubjetivação de classe, fazendo nascer o “sujeito neoliberal”. A partir daí, nasceu a “sociedade civil neoliberal”, a sociedade da dessubjetivação de classe ou a sociedade do capitalismo manipulatório.
Na década de 1990, ocorreu no Brasil uma fratura histórica-temporal.
A "velha" sociedade civil, formada a partir da luta contra a ditadura militar e do espírito coletivista cultivado pela educação popular e democrática promovida pela Campanha das Diretas Já e pela Constituinte de 1988, foi subvertida pela investida neoliberal do capital.
O avanço do neoliberalismo alterou profundamente o horizonte político-ideológico e cultural das massas, explorando de forma incessante o caos e a desordem social gerados pela própria nova ordem liberal burguesa no Brasil, a partir do governo de Collor de Mello.
Durante a década de 1980, o programa político do Partido dos Trabalhadores (PT) era mais radical em comparação com o que temos hoje. Nesse contexto de convulsão social no Brasil, marcado pela hiperinflação, exploração intensa do trabalho e desigualdade social, a luta de classes incomodava as classes dominantes. O PT desencadeou um movimento para despertar a consciência de classe (a organização da classe trabalhadora no âmbito econômico e corporativo), o que representava uma verdadeira afronta a uma sociedade burguesa fundamentada na exploração exacerbada do trabalho.
Conforme mencionado no post anterior, a década de 1980 foi uma época de "despertar coletivo" após o fim da ditadura civil-militar iniciada em 1964. No entanto, esse período de luta pela redemocratização foi apenas uma breve pausa histórica que foi tragicamente interrompida pelo neoliberalismo na década de 1990, conforme testemunhamos nos últimos trinta anos de neoliberalismo no Brasil.
A derrota eleitoral de Lula no Brasil em 1989 representou um marco histórico crucial para a submissão subalterna à globalização do capital e à nova "face do imperialismo" em escala global. Continuando a tarefa histórica dos vinte anos da ditadura civil-militar, o neoliberalismo aprofundou ainda mais a desintegração da "essência" do Estado-Nação brasileiro - e, consequentemente, da identidade do povo brasileiro.
Essa reconstrução oligárquico-burguesa do Brasil que teve início em 1964, teve uma breve pausa durante a década de 1980. Do mesmo modo, o neoliberalismo da década de 1990 teve uma breve pausa nos governos de Lula e Dilma (2003-2014)... A hegemonia burguesa no Brasil é construida por breves pausas...De pausas em pausas, a civilização brasileira afundou.
A era do capitalismo neoliberal, marcada pelo Consenso de Washington (1989), a queda do Muro de Berlim (1989) e o fim da URSS (1991), possibilitou o triunfo pleno do projeto de reordenação oligárquico-burguesa no Brasil.
Na era neoliberal, a influência político-ideológica do capital atingiu proporções significativas, resultando até mesmo em mutações nas ideologias políticas dos partidos social-democratas ou, no caso do Brasil, na transformação do PT e da CUT em instrumentos de luta de classes. Isso foi um dos elementos que contribuiu para a crise do sindicalismo brasileiro.
Ao abordarmos a crise e declinio do sindicalismo brasileiro, não podemos negligenciar o que ela oculta: a crise do partido da classe.
Na realidade, a derrota de Lula em 1989 (com o golpe midiático da TV Globo) fez parte de uma série de reações do imperialismo ao redor do mundo. Como uma província do capitalismo global, reproduzimos a nova ordem estabelecida no ocidente neoliberal, utilizando nossa própria tradição histórica: a "tendência golpista" da classe dominante brasileira (a Reforma de Abril de 1975 de Geisel, a Anistia de Figueiredo em 1979 e o Colégio Eleitoral de 1984 são apenas alguns exemplos de tentativas golpistas, sendo o golpe midiático da TV Globo em 1989 a expressão mais recente do golpismo pré-neoliberal).
O desmantelamento da consciência de classe, o processo de "dessubjetivação de classe" e a formação do sujeito neoliberal foram a estratégia bem-sucedida do neoliberalismo a partir de 1990.
A ofensiva do capital, ou seja, o neoliberalismo, não se limitou apenas à economia e à política, mas também se estendeu à ideologia neoliberal e à manipulação da subjetividade, resultando na desarticulação de coletivos e perspectivas de classe, alimentando assim o processo de transformação política e sindical que contribuiu para a crise da subjetivação de classe.
A partir da década de 2000, os temas de reflexão da sociologia marxista do trabalho foram a reestruturação produtiva, a nova organização do trabalho capitalista, a "captura" da subjetividade dos trabalhadores pelo capital, a manipulação das pessoas no ambiente de trabalho, o surgimento do "espírito do toyotismo" e a nova dinâmica da luta de classes diante da fragmentação do proletariado.
No campo marxista, já em 1993, surgiram as primeiras reflexões sobre a crise capitalista, a ofensiva neoliberal e as transformações na produção capitalista [1].. Por exemplo, em 1997, abordei a crise do sindicalismo não apenas a partir da reestruturação produtiva e da desintegração objetiva da classe devido à reestruturação tecnológico-industrial, mas também a partir da crise da consciência necessária de classe. Ou seja, a rendição do sindicalismo à nova lógica do capital e à ideologia da concertação social [2].
A ofensiva sociometabólica do capital que caracterizou a formação do capitalismo neoliberal, expôs os limites do sindicalismo.
Existem processos objetivos do novo capitalismo brasileiro, entre eles a desindustrialização e a emergência da sociedade de serviços, que provocaram mudanças estruturais no perfil das classes sociais, incluindo a burguesia. Na etapa do desenvolvimento do capitalismo global, o sindicalismo se defrontou de modo efetivo, com seus limites estruturais diante do novo processo de reestruturação produtiva do capital.
Na verdade, o novo processo de mutações tecnológico-organizacionais do capital sob o capitalismo global é conduzida pelo espírito do toyotismo, cuja característica essencial é a voracidade da “captura” (e manipulação) da subjetividade do trabalho vivo pela lógica do mercado.
A “captura” da subjetividade do trabalho pelo capital significou não apenas o debilitamento da consciência necessária na base, mas também o “transformismo” de lideranças sindicais que tinham perspectiva de classe em burocratas sindicais de prestígio que operavam a concertação social entre capital e trabalho. É isto que denominamos “dessubjetivação de classe”, ou seja, o desmonte (subjetivo-objetivo) da classe social do proletariado. Isto implica, mais amplamente, a ofensiva política e ideológica do neoliberalismo, inclusive no seio do movimento social e político da classe com a burocratização do Partido dos Trabalhadores (PT), o desmonte das CEBs pela Igreja Católica e o isolamento da Teologia da Libertação.
Em 2003, o sociólogo Francisco de Oliveira identificou “uma verdadeira nova classe social”, resultado do transformismo político do maior partido da esquerda brasileira (PT), “que se estrutura sobre, de um lado, técnicos e economistas doublés de banqueiros, núcleo duro do PSDB, e trabalhadores transformados em operadores de fundos de previdência, núcleo duro do PT”.
Mas a “captura” da subjetividade ocorre nas condições do choque de implosão da materialidade objetiva da classe devido à abertura comercial, ao desemprego em massa, à terceirização, à desindustrialização e às novas formas de gestão toyotista. Enfim, a formação da sociedade civil neoliberal “implodiu” a frágil consciência de classe.
O sentido da nova reestruturação produtiva do capital foi a formação da sociedade política e sociedade civil neoliberal. A lógica do toyotismo não está apenas na fábrica, mas também no sistema político, educacional, religioso – enfim, na vida cotidiana.
“O movimento do capital é insaciável”, disse Karl Marx.
O neoliberalismo exacerbou o poder da lógica de valorização do capital. O valor em processo é tão voraz e insaciável quanto o “Mundo” da canção de Cartola, mestre da MPB. Parafraseando a canção "O Mundo é um Moinho", diríamos que o capital é um moinho que “vai triturar os sonhos tão mesquinho [dos reformistas]/Vai reduzir as ilusões [do sindicalismo propositivo] a pó”. E pior: trinta anos depois, insistem em “humanizar” o capitalismo. E duplamente pior: “humanizar” o capitalismo dependente. “Tudo o que é sólido se desmancha no ar” – diriam Marx e Engels. Desmanchou-se a democracia social, o Estado democrático de direito, a negociação coletiva, o sindicalismo corporativo - tudo aquilo que a maioria política dos dirigentes do PT apostou na década de 1990.
Os limites do sindicalismo expõem a necessidade da ação politica na perspectiva da luta de classe. Mas - "apertem o cinto" - partido de classe sumiu !
O que tem sido exposto a partir da verificação dos limites do sindicalismo é a necessidade da ação política para além da ação imediatista, negocial, contingente, propositiva da ação sindical propriamente dita. Ação política que exige do sindicalismo uma perspectiva estratégica, formativa de sujeitos capazes de hegemonia político-cultural. Para isso, o sindicalismo precisa ter um compromisso com a luta de classes; e quando se diz “luta de classes” diz capacidade de fazer a disputa pela “cabeça do trabalhador e da trabalhadora”.
Mas falta o elo fundamental: o partido política de classe capaz de operar para além da dimensão econômico-corporativa (mesmo o PT enquanto partido de classe não age para além da dimensão econômico-corporativa, funcionado como um partido “sindicalista” incapaz de fazer a luta pela hegemonia do trabalho).
Sob a era do capitalismo manipulatório, põe-se hoje – mais do que nunca - a centralidade da luta ideológica e cultural, síntese concreta da verdadeira luta política que assume uma dimensão fulcral na luta de classes. “Fazer política de classe” é fazer a luta pela hegemonia ideológico-cultural. Mas o sindicalismo se debruçou apenas na luta corporativa e sindical economicista e da luta política que no Brasil se traduz como luta eleitoral.
Eis um aspecto da “miséria brasileira”: o politicismo.
A política se reduziu às eleições visando eleger, de quatro em quatro anos, o Presidente da República...eis o amesquinhamento dos sonhos e ilusões da política no Brasil. Este amesquinhamento da política é compartilhado por muitos intelectuais que validam a estratégia social-democrata que cultiva ilusões e sonhos tão mesquinhos, incapazes de fazer – mesmo com trinta anos de neoliberalismo – a crítica da “miséria brasileira”.
A centralidade da luta ideológico-cultural na ação política exige o investimento em formação da consciência de classe – não apenas nas bases, mas para os dirigentes sindicais e políticos que operam o movimento da classe do proletariado.
Quem educa os educadores? A idéia de “formação” (ou formação política e sindical) - que não se confunde com “formação profissional”, não se confunde com “formação cidadã” – é fundamental na nova prática política face à nova ofensiva do capital que caracterizamos acima (a ofensiva do capital operada pelo toyotismo onde se articulam a “captura” da subjetividade e a manipulação da subjetividade dos sujeitos que trabalham, visando destruir o coletivo da classe, isto é, a “dessubjetivação de classe”).
“Formação” dos sujeitos capazes de operar a hegemonia político-cultural significa ir além da cultura sindical, ou mesmo da cultura política propriamente dita; e da cultura universitária ou da cultura profissional.
Fracassamos historicamente em produzir a formação da classe. Eis a causa da nossa derrota histórica e da tragédia da barbárie social que se seguiu a ela. O Brasil vive hoje (2023), o resultado do afundamento do processo civilizatório e das promessas do capitalismo brasileiro.
A insaciabilidade do capital atrófico – o capital do capitalismo dependente de extração colonial-escravista - devorou (ou canibalizou) o Brasil (sociedade civil, ou melhor, o saudoso “povo brasileiro”).
Enquanto pesquisadores críticos, temos que entender a natureza do capitalismo manipulatório e as formas da precarização do trabalho - não apenas da objetividade do trabalho, mas principalmente da subjetividade dele face à ofensiva ideológica do capital que hoje assume hoje, dimensões delirantes, tendo em vista a sua crise estrutural.
[continua]
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[1] Em 1993 publiquei o artigo intitulado “A vigência do capital: Crise capitalista e problemas teórico-metodológicos do pensamento social centrado na categoria do trabalho” (Revista Temáticas, a revista dos doutorandos em ciências sociais da UNICAMP). Vejam a data: 1993 ! Foi um artigo seminal pois tratei das mutações do trabalho – trabalho precário, robotização, o mito do fim da sociedade do trabalho - a partir da crise capitalista e da ofensiva neoliberal. Tais temas só seriam explorados de forma sistemática por outros autores marxistas, como, por exemplo, Ricardo Antunes depois - em 1995 - no livro “Adeus ao trabalho? – Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho” (Cortez editora, 1ª. edição, 1995); e Claudio Katz, Ruy Braga e Osvaldo Coggiola no livro “Novas tecnologias: Crítica da atual reestruturação produtiva” (Xamã editora, 1995).
[2] Em 1997 defendemos a tese de doutorado em ciências sociais na UNICAMP intitulada “Reestruturação produtiva e crise do sindicalismo no Brasil”, publicada anos depois (2000) pela Boitempo editorial com o título “O novo(e precário) mundo do trabalho”.
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