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O conceito de trabalho uberizado: Nota metodológica - 3




Na primeira postagem apresentamos - a título de recurso heurístico - as formas de trabalho para – a partir delas – distinguir a forma do trabalho “uberizado”. Levantamos a tese de que o trabalho uberizado é trabalho capitalista excêntrico (o que explica a dificuldade política de regula-lo de forma convencional – isto é, de acordo com a norma de regulação fordista tal como se fazia com o trabalho assalariado típico).


Na segunda postagem discutimos as formas da excentricidade salarial do trabalho uberizado, tratando da função “intrusiva” do aplicativo e do modo “por conta própria” como componentes da forma capitalista do trabalho uberizado. Novamente se põe a necessidade de uma perspectiva dialética capaz de entender a complexidade da formação excêntrica do trabalho uberizado.


Neste terceira postagem prosseguiremos descrevendo – a título ensaístico – as formas da excentricidade uberizada, abordando a questão da forma salarial que caracteriza toda forma de trabalho capitalista. Entretanto, mais uma vez, salientaremos a especificidade do trabalho uberizado como trabalho capitalista excêntrico. Para além do empiricismo que caracteriza os estudos sobre a “uberização” do trabalho no Brasil, nos dedicaremos a elaborar teoricamente a problemática do trabalho uberizado. Não existe ciência sem teoria e conceitos capazes de discernir para além da aparência os fenômenos da vida social.


Vejamos:

 

Na medida em que o trabalho “uberizado” incorpora o modo “por conta própria” – como vimos na postagem anterior - , o sujeito que trabalha com aplicativo não recebe a rigor, “salário”, atributo pertinente à forma de trabalho capitalista, mas sim, renda (que é forma de rendimento diferente de salário).


Entretanto, na medida em que o trabalho “uberizado” é trabalho capitalista – excêntrico - pode-se conceber o rendimento do trabalho “uberizado” como sendo a “renda-salário”. Iremos explicar o porquê.


Podemos inferir que existe um primeiro momento (aparência) em que o trabalhador uberizado “vende” o serviço (mercadoria) tal como na forma 2 (o trabalho “por conta própria”) - com a diferença de que ele “permite” que ocorra a punção da corporação capitalista (a Uber, por exemplo) – a proprietária do aplicativo - sobre a renda de trabalho (o “preço” a ser pago pela utilização do aplicativo).


Mas, para além da aparência, existe outro momento (o da essência) em que se pode dizer que – por outro lado - o trabalhador “uberizado” extrai da renda obtida pelo serviço executado com o aplicativo, o seu “salário” com o qual ele deve cobrir a produção/reprodução de sua força de trabalho, as despesas de manutenção veicular (impostos, acidentes) e outras despesas com aluguel, juros, etc.).  Nesse caso, a categoria “salário” não é equivalente à categoria salário da forma 3 (a forma do trabalho capitalista propriamente dito: o “salário” do uberizado não é adiantamento, mas é obtido na medida em que ele realiza no tempo a venda de seu “serviço”.


Vejamos com mais cuidado a questão da transfiguração da forma-salário no trabalho uberizado:


Vamos utilizar novamente como recurso metodológico, as distinções das formas de trabalho.


Por exemplo, na forma 1 de trabalho (o trabalho doméstico) não existe rendimento porque a produção é de valores de uso. No trabalho doméstico não existe valor de troca e muito menos, o valor (e mais-valor) que só existem na forma do trabalho “por conta própria” (relação-valor) e na forma do trabalho capitalista (relação-valorização/capital).


Em síntese:


- Rendimento do trabalho “por conta própria) = renda-"lucro"

- Rendimento do trabalho capitalista = salário (capital variável)

- Rendimento do trabalho uberizado = “salário”-renda


Na forma capitalista propriamente dita, põe-se as categorias de “capital variável” [cv] e “capital constante” [cc] tal como descobertas por Karl Marx no Capital. O capitalista – o proprietário dos meios de produção - investe na forma de capital cv e cc, além de – tradicionalmente – coordenar/controlar a produção num “local de trabalho” submetendo o sujeito que trabalha a uma “jornada de trabalho”.


O trabalho “uberizado” “nega” tais categorias da forma clássica do trabalho capitalista.

Vejamos a morfologia do capital variável (salário) da forma do trabalho capitalista propriamente dita:


O salário que o operário recebe é – na forma da aparência - um adiantamento. Entretanto,  o que o operário recebe a título de salário é produto (ou parcela) do mais-valor produzido anteriormente (o capitalista paga o trabalho com o produto do próprio trabalho – eis a questão). Por isso, o operário recebe o que ele próprio produziu (o salário). Na medida em que ele produziu o mais-valor e sua própria sujeição (o regime do salariato), ele está “subsumido” ao capital – e não apenas “subordinado”.


Esta é uma questão importante:  só o operário – o assalariado produtivo, o produtor de mais-valor, está subsumido ao capital, porque o que ele recebe como adiantamento do capital (capital variável) é fruto de seu próprio trabalho (o mais-valor), além do fato de a categoria salário reproduzir em si, a sua própria sujeição à ordem do salariato. Veremos isso com mais cuidado na última postagem.


No caso, da renda-"lucro” da forma do trabalho “por conta própria”, não temos um adiantamento tal como ocorre na forma do trabalho assalariado capitalista: o produtor só recebe quando vender, por isso a renda do trabalho “por conta própria” não se configura – num primeiro momento - como salário. Entretanto, como o trabalho “por conta própria” está subsumido ao mercado (valor de troca), a renda-"lucro” no fundo, tem como referência a lei do valor (a categoria de renda-"lucro" é uma forma esdrúxula, pois a renda é “lucro”/excedente na aparência, sendo qualitativamente diferente da categoria “lucro” que rege a produção capitalista enquanto produção capitalista).


Assim, no que diz respeito à forma dos rendimentos, o trabalhador “por conta própria” obtém uma “renda” do seu trabalho (o produtor recebe ao vender). Mas no que diz respeito à referência (de valor) com a qual se determina, é – de certo modo - “salário”, pois tal como a forma-salário, tem como referência, a forma-valor da força de trabalho: o trabalhador deve receber – pelo menos - o necessário para sobreviver.

Vemos assim, a dança dialética das categorias.


Mas vamos adiante:  


No caso do trabalho “uberizado”, trabalho capitalista excêntrico, o pagamento da renda – o que o trabalhador recebe pelo seu trabalho - não é feito como o salário da forma clássica do trabalho capitalista, isto é, adiantado e de uma única vez – mesmo que seja, por exemplo, como salário “por peça”). Existe uma peculiaridade da forma do rendimento do trabalho uberizado: o trabalhador – por exemplo, o motorista de aplicativo - recebe de forma parcelar no decorrer de um tempo de trabalho (ele recebe uma parcela a cada micro-serviços). Assim, temos a seguinte fórmula algébrica:


RT = Rs1 + Rs2+Rs3+Rsn


Onde RT é a Rendimento Total ou o somatório da renda de cada micro-serviços.

O aplicativo tem a função de controlar de forma algorítmica, o trabalho “uberizado”, operando a contabilidade dos micro-serviços e propiciando o pagamento  – a posteriori – de um rendimento total líquido de acordo com a fórmula abaixo:


RTL = RT – rA ∑t


Onde RTL é o rendimento total líquido, RT é o rendimento total bruto e rA é a renda [punção] do aplicativo sobre os micro-serviços no decorrer do tempo de trabalho (∑t].

Deste modo, o “lucro” – o Rendimento Total Líquido final - do trabalhador uberizado vai ser o RTL – Rendimento Total Líquido - menos os custos do trabalhador “por conta própria” (custos veiculares, combustível, etc – e custos de produção/reprodução da força de trabalho):


RTLα = RTL – ∑CT


Onde RTLα é o Rendimento Total Líquido final, RTL é o Rendimento Total Líquido e ∑CT, o custo adicionado das despesas com o “capital constante” e com o “capital variável”.


Atenção: ao utilizarmos os conceitos de “capital constante” e “capital variável” o fizemos de modo excêntrico pois eles, nesse caso, são (e não são) as mesmas categorias que compõem a produção capitalista propriamente dita. Portanto, tais categorias aparecem no caso do trabalho uberizado como formas espectrais do trabalho capitalista propriamente dito. Isto nos remete a uma interessante dialética da forma excêntrica: na medida em que o trabalhador uberizado é “capitalista de si próprio”, ele se “auto-explora” e assim, categorias da “exploração capitalista” propriamente dita se manifestam no seu labor de forma espectral como indicamos acima (denominamos “espectral” porque são categorias que parecem ser, mas não são o que aparentam ser: capital variável e capital constante).

 Vejamos uma outra categoria espectral: o “lucro” do trabalhador uberizado é – na verdade -  é a “renda salarial”. Ele – o “lucro” [com aspas!] tem como referência o valor (preço) da força de trabalho e valor [preço] do trabalho do “uberizado”. Portanto, ao invés do trabalho capitalista onde o salário é o valor da força de trabalho, a “renda salarial” do trabalho capitalista uberizado diz respeito ao valor do trabalho e – ao mesmo tempo – o valor da força de trabalho.


Façamos a seguinte suposição – novamente levando em consideração as aparências do sistema: o complexo produtivo do trabalho “uberizado” implica fundamentalmente – pelo menos - duas empresas: E1 e E2. Por exemplo, E1, a proprietária do aplicativo (capitalista), ou seja, a Uber; e E2, os trabalhadores por conta própria, isto é, os motoristas de aplicativo, entendendo-os como “empresas” (trata-se – reiteremos – de suposição da aparência do sistema).


Temos num primeiro momento (aparência), a “anexação” de E2 por E1 que espolia (ela opera  uma punção na “renda” de E2).  Entretanto, pode-se dizer, por outro lado, que – essencialmente -o que ocorre é outra coisa: E1 produz E2 visando operar a partir dela, a punção da renda-"salário". 


Enquanto na forma do trabalho capitalista clássico existe acumulação de capital por meio da exploração; na forma do trabalho uberizado,  existe acumulação de capital por meio da espoliação (E1 apropria-se de parcela de “mais-valor” produzida por E2 – a categoria de “mais-valor” [com aspas!] opera também no trabalho “por conta própria” enquanto processo de formação de valor (como vimos na primeira postagem.


Portanto, a empresa E1 – a proprietária do aplicativo – opera a punção ou espoliação do quantum de renda (o “mais-valor/”lucro”) da empresa E2. A rigor o trabalhador “uberizado” não é explorado por E1 – ele se “auto-explora” como vimos. O que ocorre é um processo complexo no qual (1) ele  - o trabalhador “uberizado” ou a empresa E2 - se auto-explora, produzindo uma “massa de mais-valor” que é apropriado por E1.


Podemos discernir três processos:


1. Enquanto empresa capitalista, a empresa proprietária do aplicativo, a E1 explora seus empregados (por trás do aplicativo, existe oculto um complexo laboral de administração da “exploração” do trabalho uberizado, sendo os empregados diretos da Uber, por exemplo, trabalhadores produtivos que produzem o serviço de transporte individual, sendo que o processo de produção possui uma alta composição orgânica).


2. Por outro lado, temos a “auto-exploração” no âmbito da empresa E2, ou seja, na medida em que ele é trabalhador “por conta própria”, o trabalhador uberizado opera o processo de formação de valor - ele se “auto-explora”, produzindo uma massa de mais-valor/lucro1.

3. Finalmente, temos a espoliação que a empresa E1 exerce sobre a E2, puncionando parcela do lucro de E2 (o lucro de E2 sofre punção também do Estado por meio de taxas/multas que possa ocorrer).


No Livro 2 de O Capital,  quando Marx fala de indústria de transporte, a análise dele diz respeito a uma empresa E1 que funciona como empresa capitalista que explora o negócio de transporte (o capitalista da empresa de transportes explora a força de trabalho que ele contrata para operar os meios de produção: os veículos de transporte e ainda, os empregados do setor de administração da empresa dele).


No caso da empresa E2 temos algo diferente: ela surgiu com o aplicativo e-hailing que criou a base tecnológica para o trabalho uberizado. A E2 foi criada – nesse caso – pela E1.

No trabalho “uberizado” os meios de produção – com exceção do aplicativo – são propriedades do trabalhador “por conta própria”, diferentemente do que ocorre no trabalho capitalista propriamente dito (o aplicativo é uma forma espectral do capital constante – que não pertence ao sujeito que trabalha, diferentemente dos outros meios de produção).


 Ao mesmo tempo, no caso de E2 não temos operando o capital variável na medida em que o trabalhador “uberizado” não recebe salário, isto é, ele não é força de trabalho contratada propriamente dita (E1 “anexou” E2 pulsionando a renda-salarial do trabalho de E2).


Entretanto, existe uma outra perspectiva do processo: E2 foi “produzida” por E1, o que significa que, a força de trabalho – embora formalmente apareça como trabalhador “por conta própria” – é de fato, “forma espectral” de capital variável.


Na verdade, E2 foi “produzida” para ser espoliada por E1 (mesmo sendo produzida não deixa de operar o processo de auto-exploração enquanto empresa E2 e espoliação pela empresa E1).


Vejamos outros elementos do processo de trabalho: contrato de trabalho, local de trabalho e jornada de trabalho:


No plano formal, a relação de trabalho “uberizado” não implica o contrato de trabalho posto comumente na empresa capitalista (o que existe é um termo de utilização do aplicativo da empresa E1 pelo trabalhador por conta própria da empresa E2). O trabalho uberizado não é trabalho “autônomo” pois o operador está sob controle do aplicativo, isto é, a forma tecnológica “produziu” uma relação de subordinação atípica no que diz respeito à atividade e operação da remuneração do trabalhador uberizado.


No trabalho “uberizado”, o local de trabalho foi desterritorializado e a forma da atividade enquanto prestação de serviço é individual. Ao mesmo tempo, não existe formalmente a demarcação de uma jornada de trabalho (a jornada de trabalho é a jornada de trabalho escolhida pelo próprio trabalhador - aparentemente existe a “liberdade” de escolher o tempo de trabalho, mas isto é mera ilusão pois a lei do valor impõe o tempo de trabalho necessário para o trabalhador produzir e reproduzir sua força de trabalho ).


Concluindo as considerações sobre a forma salarial no trabalho uberizado:


No trabalho uberizado, o trabalhador não produz o “capital variável”, pois não existe um salário que lhe é adiantado como forma de remuneração. Ele não produz sua própria alienação tal como o operário que estava subsumido ao capital (no trabalho capitalista propriamente dito, o operário produz sua própria alienação por meio do salariato ou o salário enquanto relação social de produção capitalista que o mantém escravizado – isto é, o trabalhador produz seu salário). Mas no caso do trabalho “uberizado” existe a subordinação do trabalhador ao capital por meio do “contrato” de uso do aplicativo da empresa E1. A subordinação do trabalho “uberizado” ao capital ocorre por meio do controle interno/subjetivo da gestão ideológica do toyotismo/empreendedorismo e do controle externo/tecnológico da tecnologia algorítmica de propriedade da E1.


Na forma “uberizada”, o trabalhador produz a sua “renda salarial”  – desdobrada no decorrer do tempo – que  é – de fato - “renda” no sentido de que não é parte de uma mais-valia distribuída na forma de salário.  Nesta perspectiva, a “renda” do “uberizado” não é parte de uma mais-valia, mas sim, da renda do trabalho “por conta própria”, produto da auto-exploração no processo de prestação de serviço (serviço pago – no caso dos motoristas de aplicativo - pela “renda” dos clientes. Assim, indiretamente, a empresa E1 se apropria – por exemplo - da renda salarial dos clientes do trabalho “uberizado”. Mas – e isso é importante – foi a E1 que produziu E2. Não foi E1 que “anexou” a multidão de trabalhadores “por conta própria”, visando espolia-los, mas sim, ela os “produziu” para espolia-los – não explora-los no sentido clássico.


Em síntese: os trabalhadores “uberizados” são filhos – ou partes orgânicas - dos “aplicativos” do qual estão alienados, sendo deles dependentes. Não foram expropriados pelos capital, mas sim, foram produzidos pelo capital para serem “explorados” (como os replicantes no filme Blade Runner, de Ridley Scott).


Qual a saída revolucionária?


Os trabalhadores se apropriarem do aplicativo e trabalharem de forma cooperativa utilizando o algoritmo com a função única e exclusiva de redistribuir de forma democrática a massa de mais-valor produzida pelo trabalho “por conta própria”.  


Na próxima – e última - postagem discutiremos a questão do controle tecnológico do trabalho uberizado.

 

 

 

 

 

 

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