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Notas sobre a mutação antropológica


O desenvolvimento do capital e o sociometabolismo da alienação capitalista (o estranhamento e o fetichismo da mercadoria) conduzem irremediavelmente à "mutação antropológica". É o que temos presenciado há pelo menos meio-século de capitalismo tardio e de intensa (e extensa) modernização do capital. Isto expõe de forma trágica, a "fratura metabólica" entre o homem e a Natureza.


Na medida em que a luta de classes foi esvaziada pela voracidade da ofensiva neoliberal do capital, dando lugar à dessubejtivação de classe, a mutação antropológica aprofundou-se no sentido da alienação capitalista. Na medida em que se ampliou e deu saltos qualitativamente novos, a mutação antropológica excretou o sociometabolismo da barbárie (a "excreção" é o processo pelo qual os produtos residuais do metabolismo e outros materiais sem utilidade são eliminados do organismo). Assim, a barbárie social é a merda da mutação antropológica provocada pelo capital.

Mas por que discutir a mutação antropológica?


Em primeiro lugar, porque precisamos abrir a discussão de como operar a luta de classes nas condições históricas da mutação antropológica e do sociometabolismo da barbárie. Devemos continuar fazendo a política da luta de classes do mesmo modo como se faz desde o século XX? É claro que não. E – o mais importante – urge se interrogar: como fazer a política socialista face à barbárie social? Não se trata mais de socialismo ou barbárie. Ele – o sociometabolismo da barbárie – já está entre nós. Trata-se de socialismo ou extinção (o que se coloca hoje – mais do que nunca – como possibilidade histórica).

Poucos autores marxistas utilizaram o termo “mutação antropológica”. Diz respeito à criação de uma nova forma de humano ou de subjetividade humana (Antonio Gramsci na década de 1930 fez referencia a isso quando tratou do americanismo e fordismo).


Vamos abordar aqui – de modo breve - a concepção de mutação antropológica de dois autores: Pier Paolo Pasolini, um renomado cineasta e escritor italiano; e Franco “Bifo” Berardi, filósofo italiano e participante ativo dos movimentos autônomos italianos desde a década de 1970. Ambos utilizam o termo “mutação antropológica”.

Para Pier Paolo Pasolini, o termo "mutação antropológica" descreve as mudanças profundas que ele observou na sociedade italiana durante a década de 1960, como resultado do avanço tecnológico e do processo de modernização. Naquela época, Pasolini identificou vários sintomas que afetaram os indivíduos em suas disposições e habilidades, como resultado dessa mutação antropológica. Entre esses sintomas, destacam-se a crise de sentido, a inexpressividade, o conformismo, a agressividade, o mimetismo, a nova delinquência e várias degenerações do corpo e da individualidade.

Pasolini acreditava que essa mutação estava colocando em risco o estatuto e a integridade antropológica, pois estava destruindo uma tradição cultural e dando origem a uma nova cultura, uma nova linguagem, de natureza evidentemente tecnológica e com padrões burgueses. Pasolini procurou compreender o que afetou o modo de vida anterior, após a presença dos novos estilos de vida oriundos da modernização capitalista sofrida pela Itália na década de 1960: nos sentidos, nos corpos, na fala, nos comportamentos, nos laços sociais e relações comunitárias.


Portanto, a "mutação antropológica" de Pasolini refere-se às transformações profundas na sociedade, na cultura e no indivíduo, resultantes do avanço tecnológico e do processo de modernização do capital.

Por outro lado, Franco Bifo Berardi usou o termo "mutação antropológica" mais recentemente – década de 2000 - para descrever as mudanças profundas na percepção e sensibilidade humanas causadas pelo impacto das tecnologias digitais. Berardi argumenta que nossa exposição a tecnologias digitais, que operam de acordo com uma lógica altamente formatada, está atrofiando nossa capacidade de interpretar sinais não-discursivos e não-codificados. Isso, por sua vez, leva a uma atrofia da empatia, que ele define como a capacidade de "sentir com", de sentir o outro como extensão da nossa existência e do nosso corpo.


Berardi também discute como a mutação digital está modificando a percepção estética e a percepção erótica. Segundo ele, estamos vivendo uma mudança de percepção erótica do corpo do outro para uma percepção cada vez mais informatizada: o corpo do outro nos aparece como signo, como informação. Essas mudanças, segundo Berardi, exigem que tudo seja repensado, pois o alcance da mutação digital é muito profundo (Berardi identifica a “mutação antropológica” como sendo a característica do “semiocapitalismo” ou capitalismo semiótico) .


Entre a concepção de Pasolini na década de 1960 e a de Berardi na década de 2000 decorreu meio-século – exatamente o período histórico de crise e desenvolvimento do capitalismo neoliberal.


Na verdade, Pasolini faz referência à “primeira onda” da mutação antropológica ocorrida após a Segunda Guerra Mundial com – por exemplo - o processo de modernização da Itália ocorrida na década de 1960. É o período de emergência do neocapitalismo e da nova civilização do consumo e da cultura de massa com as novas tecnologias e a padronização dos comportamentos e a perda do sentimento de comunidade.


Na mesma época em que Pasolini fez referencia à “mutação antropológica”, o filosofo húngaro Gyorgy Lukács em suas entrevistas, constatou o desenvolvimento do “capitalismo manipulatório” – termo criado por ele -, salientando a mudança histórica do metabolismo da alienação capitalista com o desenvolvimento da produção de mais-valia relativa. Embora Lukács não utilize o termo “mutação antropológica”, ele chegou a reconhecer que o neocapitalismo (ou o capitalismo manipulatório) criou novas formas de alienação que deveriam ser objeto de estudos dos marxistas.


Em 1964, o filosofo Herbert Marcuse publicou o livro One-dimensional man: Studies in the Ideology od Advanced Industrial Society ("A Ideologia da Sociedade Industrial: O homem unidimensional"), tratando do mesmo modo de transformações sociais por conta do desenvolvimento tardio das sociedades industriais (as novas formas de controle, o fechamento do universo político, a dessublimação repressiva, a vitória do pensamento positivo). Embora Marcuse não utilize o termo “mutação antropológica”, é disto que se trata. Diferentemente de Lukács, Marcuse e Pasolini eram pessimistas com respeito às possibilidades futuras da emancipação social.


Naquela época, Pasolini, Lukács e Marcuse – entre outros -, analistas críticos do mundo histórico do capital, não deixaram de refletir – cada um a seu modo – sobre o triunfo ( e exacerbação) do fetichismo da mercadoria e seus impactos na vida social. É disto que se trata: o aprofundamento da alienação capitalista impulsiona processos sociometabólicos que alteram a subjetividade das pessoas, produzindo a “mutação antropológica”.


Não foi a toa que István Mészáros no inicio da década de 1970 publicou o livro clássico “A teoria da alienação em Marx” que visa destacar a importância dos marxistas estudaram processos sociometabólico visando entender o novo (e precário) mundo do trabalho e da luta de classes.


Infelizmente, o marxismo – recolhido no seu viés politicista ou economicista ou ainda no doce sono filosófico da hermenêutica marxista - deu pouco valor à elaboração critica – dialeticamente criativa - de uma teoria materialista da subjetividade e da personalidade visando a partir dela, fazer a crítica do capital como forma de controle sociometabólico.


Assim, fins da década de 1960 foi um “ponto de inflexão” na processualidade histórica do sistema-mundo do capital. Autores como Pasolini, Lukács e Marcuse – cada um a seu modo - expuseram o progresso da alienação capitalista (o estranhamento e o fetichismo da mercadoria) por conta da nova civilização tecnológica do consumo, o novo patamar da alta modernidade do capital. Isto diz respeito à processualidade sociometabólica do capital.


Após a Segunda Guerra Mundial - com o boom da economia capitalista da década de 1960, a disseminação do americanismo e do fordismo, a afirmação da sociedade de consumo de massa, o capitalismo manipulatório, as contradições de desenvolvimento do capital na década de 1960 conduziu o Ocidente à crise estrutural do capital cuja dinâmica histórica é diferenciada - por exemplo - da dinâmica econômica das crises cíclicas do capitalismo .Na verdade, o “inicio” da crise de civilização do capital ocorreu naquela conjuntura de fins da década de 1960, quando ocorreram grandes confrontações sociais que inaugurou a larga temporalidade histórica – pelo menos meio-século – de crise estrutural do capital.


Assim, podemos dizer que a “primeira onda” da mutação antropológica foi impulsionada pelo inicio da crise estrutural do capital que, de acordo com István Mészáros, ocorreu em fins da década de 1960. Na medida em que se trata de uma processualidade sociometabólica, ela implica mudanças de elementos antropológicos, estéticos, éticos e políticos de amplo espectro (ou diríamos ainda, utilizando o termo foucaultiano, elementos “biopolíticos”). A mutação antropológica se desdobrou nas décadas seguintes de desenvolvimento do capitalismo global - com destaque a partir de meados da década de 1970, operando de modo cumulativo, dando saltos qualitativamente novos, fazendo surgir no decorrer da década de 1980 e além, o filho dileto da "mutação antropológica" e seu processo social correlato: o sujeito neoliberal e o sociometabolismo da barbárie.


Portanto, a “mutação antropológica” constatada por Pasolini, Lukács e Marcuse – por exemplo – aprofundou-se nas décadas seguintes por conta do choque da reestruturação capitalista na década de 1970 e 1980, dando origem ao sociometabolismo da barbárie.


O ethos neoliberal teve impactos nas disposições e na estrutura moral dos indivíduos. Com o fim da URSS em 1991 e a ascensão do globalismo neoliberal, o Ocidente presenciou um profundo processo de transformismo na esquerda social e politica, que colaborou com a consolidação da miséria neoliberal nas décadas de 2000 e 2010. O que por exemplo, Pasolini identificou como crise de sentido, conformismo, as várias degenerações do corpo e da individualidade, tiveram amplo desenvolvimento na era neoliberal.


Como temos salientado, o capitalismo neoliberal promoveu uma verdadeira “revolução cultural” na década de 1980. A disrupção da in-sociabilidade neoliberal fez emergir a “cultura do narcisismo” e o “tempo das tribos”. A crise de identidades sociais foi manipulada pelo imperialismo como arma de “dessubjetivação de classe” (o identitarismo).


Neste período neoliberal, proliferou-se uma série de reflexões filosóficas e sociológicas que demarcam o surgimento de um “novo humano” a partir das mutações do metabolismo social neoliberal. O discurso da biopolítica é limitado por que está esvaziado de conteúdo histórico-materialista e de crítica do capital. O cerco do sociometabolismo da barbárie se fechou, fazendo emergir o neosujeito ou sujeito neoliberal (Dardot e Laval), ou ainda o “homo neoliberalus” (Teo).


Vários autores – com destaque para os franceses na década de 2000, elaboraram criticas interessantes do metabolismo social (e psíquico) do neoliberalismo (Dardot e Laval, 2016; Lebrun, 2008; Dufour, 2002). Na verdade, o sujeito neoliberal é produto da mutação antropológica – que efetivamente decorre da biopolítica do capital. Temos caracterizado a partir daí um corte geracional: surge a geração neoliberal que ocupou o mercado do trabalho na década de 2000.


Diferentemente de Berardi, não reduzimos a “mutação antropológica” aos avanços tecnológicos, embora não desprezemos o impacto das tecnologias informacionais no processo de subjetivação – e principalmente, de organização das pulsões do novo sujeito neoliberal. É indiscutível que a Internet e as redes sociais tiveram impactos na sociabilidade humana. Mas não podemos responsabilizar a tecnologia informacional pela degradação do humano.


Por exemplo, a atrofia da empatia tem muito mais a ver com o sociometabolismo do mercado capitalista (ou a exacerbação do fetichismo da mercadoria) do que com o impacto – em si - das tecnologias digitais. Não podemos fetichizar as tecnologias digitais. Portanto, para nós, a “mutação antropológica” diz respeito às mudanças profundas que observamos surgir na sociedade neoliberal – isto é, àquilo que denominamos sociometabolismo da barbárie, um metabolismo social que implica uma nova forma de subjetivação e organização pulsional dos indivíduos.


Assim, a “mutação digital” de Franco Berardi contribuiu – embora não exclusivamente – para a organização das pulsões dos indivíduos. Não podemos minimizar a explosão das tecnologias digitais e seus impactos na vida social e na (de)formação das personalidades humanas. Mas as tecnologias são materialidades imbuídas da forma social. É preciso situa-las no interior da forma social do capital e do seu modo de desenvolvimento.


Numa perspectiva freudista, os impactos pulsionais das novas tecnologias capitalistas digitais reforçam a vigência da “pulsão de morte”. Deste modo, Pasolini na década de 1960 e até 1975, nos indicou um ponto de partida crítico que ele não chegou a ver plenamente desenvolvido (como sabemos o cineasta italiano foi morto em 1975. Pasolini foi consumido pela barbárie social que ele tanto criticou).


Podemos periodizar historicamente as “ondas” do processo de mutação antropológico impulsionado pelo capitalismo tardio do seguinte modo:


Enquanto a “primeira onda” da mutação antropológica teve inicio com o salto do neocapitalismo nas décadas de 1960 (e a crise capitalista de meados dos anos de 1970); a “segunda onda” se desdobrou como resultado da reestruturação capitalista e do surgimento e desenvolvimento do capitalismo global neoliberal na década de 1980-2000. Foi nesta época histórica da ofensiva neoliberal do capital que se constituiu e ampliou-se o sociometabolismo da barbárie. Vivemos hoje a “terceira onda” da mutação antropológica que teve início na década de 2010 com a crise do capitalismo global, a consolidação da miséria neoliberal e o sociometabolismo da barbárie (assim, por exemplo, a reflexão de Franco “Bifo” Berardi – e todos os críticos da cultura neoliberal - faz parte desta “terceira onda” histórica de mutação antropológica).


Na “terceira onda” da mutação antropológica – sob o espectro do pós-humano - e ao lado do sociometabolismo da barbárie, temos como uma nova determinação que amplia o sentido histórico da mutação antropológica: o colapso ambiental resultado da crise ecológica proclamada há décadas pelos especialistas que estudam a Terra.


Mas o que tem a ver colapso ambiental com sociometabolismo da barbárie e por consequencia, com mutação antropológica?


Eles são espectros do pós-humano, isto é, manifestações num patamar histórico superior, da “fratura metabólica” provocada pelo capital na relação dos humanos com a Natureza (não apenas a natureza externa, a biosfera; mas a natureza interna, os humanos e suas relações sociais). As duas naturezas foram degradadas pelo capital. No caso da degradação da natureza dos humanos no que diz respeito à sua humanidade, denominamos isto “mutação antropológica” - que assume forma superior com o sociometabolismo da barbárie. Mas o colapso ambiental - que é expressão da degradação da Natureza - pode ser considerado também manifestação da mutação antropológica.


Assim, concluiremos lançando a idéia de que a “mutação antropológica” diz respeito não apenas às mudanças do sociometabolismo – isto é, da sociedade e da sociabilidade sob impactos das mutações tecnológicas e da miséria neoliberal, mas às mudanças na biosfera por conta da era do Antropoceno.


O homem muda efetivamente por conta das mudanças do seu habitat natural. Trata-se de um conjunto de mutações antropogênicas – de si e dos outros, e da biosfera sob impacto da atividade humana - que fazem nascer o “novo humano” – no que diz respeito a sua relação com o meio-ambiente.


Assim, o conceito de “mutação antropológica” torna-se para nós, mais amplo e radical na medida em que articula num todo orgânico, os humanos, a sociedade e a Natureza. A deriva do humano é a deriva do conjunto de tais elementos antropogênicos.


Nossa tarefa política é saber como formar a consciencia de classe dos novos humanos produtos do desenvovimento do capital senil.

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