É interessante resgatar um artigo do historiador inglês Eric Hobsbawn publicado para o El País em 1995 intitulado “Mudança no proletariado provoca crise das esquerdas”. A década de 1990 foi a década de ascensão do capitalismo global a partir do qual se consolidou o Estado neoliberal, isto é, a sociedade politica e a sociedade civil neoliberal. Foi a partir daí que fomos projetados para a era do sociometabolismo da barbárie.
Quais as mudanças no proletariado que provocam - até hoje - a crise das esquerdas?
A década de 1990 se iniciou com o fim da URSS, encerrando o ciclo histórico aberto com a Revolução Russa de 1917. Foi uma época de derrotas históricas - objetivas e subjetivas - da classe operária. Foi a crise terminal da esquerda ou dos partidos socialistas e partidos comunistas da Europa. Hobsbawn observou que tais partidos de esquerda perdiam base social pelo menos desde a década de 1970 com a reestruturação produtiva do capital, a nova divisão internacional do trabalho e as metamorfoses do proletariado. No caso do Brasil, depois da derrota político-eleitoral da Frente Brasil Popular em 1989 e a ofensiva neoliberal do começo da década. impulsionou-se a reestruturação produtiva do capital e o transformismo ideológico-político do Partido dos Trabalhadores (PT) e as metamorfoses do sindicalismo brasileiro sob a direção da CUT.
Mas a perda de base social dos partidos comunistas e socialistas não significava que o proletariado estivesse se extinguindo.
Neste pequeno artigo, Hobsbawn faz um breve balanço do que aconteceu com a classe trabalhadora desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Neste meio-século, diz ele, testemunhamos as mais drásticas transformações sociais de toda a história da humanidade que afetaram a forma de ser do proletariado nos países capitalistas mais desenvolvidos.
Muitos observadores – diz ele - trataram esta questão como se o proletariado estivesse desaparecendo, deixando assim os partidos socialistas e comunistas da Europa sem base social e sem o mediador com o qual sempre contaram para a transformação social.
Hobsbawn critica aqueles analistas que reduziram a crise dos partidos de esquerda socialista à simples redução quantitativa das classes trabalhadoras. Pelo contrário, diz ele, comparando-se com outros estratos sociais, a classe trabalhadora mostrou uma notável estabilidade pelo menos até a década de 1980. Diferentemente dos camponeses que deixaram de existir como classe social, pelo menos como componente majoritário da população, tanto na Europa como na Europa e em todo o Hemisfério Ocidental, bem como no Leste Asiático industrializado e em grande parte do mundo islâmico, a classe dos trabalhadores assalariados cresceu de modo notável após a Segunda Guerra Mundial.
Por outro lado, diz ele, “surgiram outras novas classes que mal existiam 40 anos atrás, especialmente no estrato social que controla a informação e nas áreas relacionadas à educação”. O historiador inglês observou que antes da Segunda Guerra Mundial, os estudantes universitários formavam um grupo demograficamente insignificante, totalizando apenas algumas dezenas de milhares, mesmo em países europeus mais desenvolvidos como a Alemanha. Hoje - em 1995 - eles chegam a milhões e, em alguns países, constituem entre 2% e 5% da população total.
No Ocidente, cresceu o proletariado de serviços e reduziu-se é claro, o proletariado industrial, o caso de pessoas empregadas na indústria ou na construção. Entretanto, ele diz que globalmente, o tamanho da classe operária permaneceu estável entre 1960 e 1980 nos países industrializados (capitalistas) – e provavelmente tenha se ampliado consideravelmente na Ásia (China e Índia – por exemplo).
Diz Hobsbawn que “com quase certeza absoluta, a classe trabalhadora, mesmo no final dos anos 1980, compunham uma porcentagem consideravelmente maior da população trabalhadora do que nos dias de glória dos partidos proletários e socialistas.” Portanto, é uma falácia afirmar que o fim da classe trabalhadora esteja à vista.
A discussão sobre a perda da centralidade do trabalho e o fim da classe trabalhadora era muito forte na década de 1990, o que levou por exemplo, o sociólogo Ricardo Antunes naquela época, a combater tais ideólogos do fim do trabalho no seu livro de 1995: “Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho”.
Mas fica a questão: se o problema não era o fim da classe trabalhadora como proclamavam na época, Claus Offe e André Gorz, por exemplo, qual era de fato a verdadeira mudança histórica promovida pelo capital?
Hobsbawn é categórico: estamos vivendo uma mudança subjetiva para as classes trabalhadoras. Esta é a questão – o verdadeiro problema é o declínio da coesão e da consciência de classe. Foi isso que explicou por que na década de 1970 o apoio político ao Partido Britânico ou porque o Partido Comunista Francês perdeu uma parte considerável de sua sólida base proletária, tão poderosa em outros tempos.
Hobsbawn faz referência a primeira fase da ofensiva do capital manipulatório, o neocapitalismo impulsionado a partir de 1970 que disseminou a sociedade de consumo, o fetichismo da mercadoria, a coisificação das relações sociais, a explosão das mídias – ao mesmo tempo, a incapacidade das esquerdas sociais e políticas de disputarem a organização da cultura e enfrentarem a captura da subjetividade dos trabalhadores.
Isto teve obviamente, impacto diruptivo na identidade de classe, aquela identidade de classe que fazia com que os trabalhadores percebessem a situação de sua classe, e chegassem à conclusão de que deveriam agir juntos na sociedade como uma classe, com o objetivo de melhorar ou mudar sua situação. Esta identidade de classe dava fundamento para que a ação coletiva mostrasse sua força política. As próprias palavras “trabalhador” ou “força de trabalho”, e aquelas contidas no nome de um partido (socialista ou comunista ou ainda, Partido dos Trabalhadores – no caso do Brasil), forneciam um programa suficiente, por um lado, e um argumento convincente, por outro.
Portanto, Hobsbawn identificou a crise do proletariado não em sua redução objetiva, mas sim na sua degradação subjetiva por conta do abatimento da sua consciência de classe, o que por conseguinte, tratava-se da crise do intelectual orgânico da classe ou a crise do Partido de classe.
Na década de 1990, a crise do Partido de classe alcançaria um patamar superior com o transformismo politico-ideologico de intelectuais e partidos de esquerda após o fim da URSS, muitos deles se rendendo à ordem capitalista e à ideologia do mercado. Deixou-se de lado a luta pelo socialismo e privilegiou-se por corropção ou oportunismo, à adessão à ordem burguesa.
É o que denomino "dessubjetivação de classe". Deixamos de produzir sujeitos de classe e o capital passou a produzir neosujeitos (Lebrun) ou o sujeito neoliberal (Dardot e Laval). Foi a partir daí que se constituiu a hegemonia neoliberal - e a sociedade civil neoliberal.
Mas o processo de subjetivação de classe é um processo historicamente complexo, ocorrendo desde o fim da Segunda Guerra Mundial, sendo parte daquele que Lukács intitulou "capitalismo manipulatório" (tratamos disso no livro "O triunfo da manipulação", Praxis, 2022).
O processo histórico de “dessubjetivação de classe” foi desenvolvido pelo capital, numa primeiro momento, a partir da força do fetichismo da mercadoria e da coisificação (o que Lukács denominou verdinglichung) por conta da disseminação da sociedade de consumo. O ethos consumista e o poder da ideologia liberal fez com que, pouco a pouco, efetivamente fosse privatizado as aspirações das pessoas, reduzindo-as à vida doméstica no berço da tecnologia que tanto isola quanto satisfaz: a televisão. vídeo. telefone,- depois, computador, Internet.
Diz Hobsbawn que a vivência coletiva, tão importante para a existência da classe trabalhadora, foi erodida, não só no trabalho, mas também na rua, no bairro, na praça e nas reuniões públicas.
Isto de fato constituiu a primeira onda histórica da dessubjetivação de classe ocorrida com o americanismo e o fordismo nas décadas após a Segunda Guerra Mundial (utilizando os termos d Antonio Gramsci).
Mas o que Hobsbawn constatou no começo da década de 1990, tendo como referência a primeira onda da dessubjetivação de classe, apenas se aprofundou em trinta anos de capitalismo neoliberal.
A partir da década de 1980, ocorreu uma segunda onda da dessubjetivação de classe, mais profunda na medida em que foi impulsionada pelo fetichismo do capital fictício, a disseminação da cultura do pós-modernismo e do ethos identitarista, a reestruturação geopolítica do capitalismo liberal com o fim da URSS e dos países do Leste Europeu, e a reestruturação produtiva organizacional-tecnológica sob a dominância toyotista.
O nexo essencial do toyotismo é a “captura” da subjetividade e a produção do capital tornou-se totalidade social. O capital produziu um novo tipo de sujeito adequado à nova era histórica do capitalismo global: o sujeito neoliberal.
Foi a segunda onda da dessubjetivação de classe que produziu o sociometabolismo da barbárie, destruindo de vez a experiencia coletiva e a identidade de classe – em troca o capital ofereceu aos indivíduos outras identidades – particularistas, identitarista, tendo como fundo, valores, expectativas e utopias de mercado.
Na década de 2000, por exemplo, autores franceses como Jean-Pierre Lebrun, Pierre Dardor, Christian Laval e Dany Robert Dufour, criticos do neoliberalismo ficaram atentos ao surgimento da nova subjetividade do capital oriundos da segunda onda de dessubjetivação de classe. Eles salientaram o surgimento do neosujeito ou do sujeito neoliberal, o sujeito competitivo que habita as organizações públicas ou privadas.
O sujieto neoliberal é o produto legítimo da dessubjetivação de classe ocorrida na era do toyotismo. É resultado da renuncia politico-ideológica de partidos e sindicalos socialistas e sociais-democratas à formação da consciência de classe e portanto, da formação da classe.
Enquanto a primeira onda da desussubjetivação de classe pode ser considerada uma subsunção formal da consciência do proletariado à ordem capitalista, a segunda onda de dessubjetivação de classe foi, de fato, a subsunção real a partir do qual se formou o novo sujeito neoliberal - individualista, perverso e competitivo - adequada à nova dominância do capital fictício.
No esteio da perda da identidade de classe, emergiu, principalmemte na Europa ocidental capitalista, a xenofobia, talvez a principal ideologia de massa do final do século XX, que afeta a classe trabalhadora mais do que qualquer outro grupo social, já que hoje, mais do que nunca, é uma coleção de imigrantes de diferentes regiões. países e continentes que agrupam e solapam uma frágil unidade de diásporas.
A reflexão de Hobsbawn feita em em meados da década de 1990 estava no limiar da nova temporalidade histórica do capital, a era do sociometabolismo da barbárie e do capitalismo neoliberal. Ao lado da xenofobia, impôs-se também nos últimos trinta anos de capitalismo neliberal, as ideologias do identitarismo e do politicamente correto, com a colonização da linguagem e da subjetividade das pessoas que trabalham.
Portanto, o verdadeiro problema histórico com que nos defrontamos hoje não é o fim do proletariado ou da condição existencial de proletariedade – que objetivamente, pelo contrário, se ampliou numa dimensão universal. Nosso verdadeiro (e trágico) problema histórico é o declínio da coesão e da consciência de classe por conta das metamorfoses da subjetividade da classe tendo em vista efetivamente a ausência do movimento – politico e social – contra a hegemonia neoliberal.
Estamos hoje - trinta anos depois daquilo constatado por Hobsbawn - pagando um alto preço pelo transformismo ideológico-politico das esquerdas na década de 1990.
Diante da degradação da ordem social do capital por conta de sua crise estrutural, e do aumento da alienação do trabalho (sofrimento psiquico e violencia de toda ordem - deles contra nós, e nós contra nós mesmos); e da falta de uma verdadeira esquerda social e política anticapitalista e de massa, o sentimento contingente de indignação e revolta das massas canaliza-se para as hostes da extrema-direita.
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