Na postagem anterior, expusemos em linhas gerais – e até de forma redundante - o conceito de superexploração destrutiva do trabalho vivo, relacionando-o à crise estrutural do capital e ao Estado neoliberal. No caso do Brasil, vinculamos essa categoria à financeirização da riqueza capitalista, à predominância do capital fictício e à desindustrialização acelerada e precoce que, juntamente com a sociedade de serviços, evidencia a crise do mais-valor. Enfim, existe um amplo campo de pesquisas que se fazem necessárias para entendermos a abrangencia da produção destrutiva do trabalho vivo.
A categoria de superexploração destrutiva do trabalho vivo é - acima de tudo - uma característica do capitalismo catastrófico, do qual o Brasil neoliberal é um exemplo histórico privilegiado no século XXI.
Na exposição anterior ressaltamos ainda que a superexploração destrutiva do trabalho vivo coexiste com as dimensões constitutiva e operativa da superexploração do trabalho (conceitos estes salientados por Adrian Sotelo Valencia).
Nesta nova - e última - postagem vamos procurar avançar mais um pouco no esclarecimento do conceito de superexploração destrutiva do trabalho vivo.
Pode-se argumentar que não existe superexploração destrutiva, alegando que o adjetivo "destrutiva" negaria o próprio sentido do substantivo "superexploração" e sua função de aumentar, por exemplo, o mais-valor. É de fato, um conceito paradoxal – mais vou tentar esclarecer o sentido do paradoxismo.
Em primeiro lugar, a categoria “força de trabalho” é uma mercadoria “de exceção”, ou seja, a força de trabalho é mercadoria e – ao mesmo tempo - não é mercadoria. Isto é, a força de trabalho é uma mercadoria cujo valor de uso (o trabalho vivo) não se reduz àquilo que se tornou: valor de troca (a força de trabalho como mercadoria).
Distinguimos trabalho vivo e força de trabalho (como mercadoria). Por isso o termo: superexploração destrutiva “do trabalho vivo” e não “da força de trabalho”.
O trabalho vivo diz respeito à pessoa humana que trabalha – que não pode ser reduzida à força de trabalho como mercadoria. É por ser trabalho vivo que a força de trabalho utilizada como mercadoria pelo capital, é capaz de produzir mais-valor. Mas a primeira não pode ser reduzida à segunda.
A superexploração destrutiva degrada o trabalho vivo. É – por isso - uma forma de degradação da natureza na medida em que o trabalho vivo é parte compositiva da natureza - que está em nós ! (o que expõe o vínculo orgânico entre superexploração destrutiva do trabalho vivo e fenda metabólica entre o capital e a natureza no século XXI).
Na era da crise estrutural do capital e da generalização da superexploração do trabalho, explicita-se a produção destrutiva do trabalho vivo - isto é, da superpopulação sobrante incapaz de ser absorvida pela máquina de produção do capital. É por isso que a destruição diz respeito ao “trabalho vivo” e não propriamente à “força de trabalho” (como mercadoria).
Na verdade, sob a era do capitalismo catastrófico, a força de trabalho como mercadoria foi negada pelo valor “afetado de negação” e o que restou – o trabalho vivo – encontra-se sob fogo cruzado.
Este conceito de superexploração destrutiva do trabalho vivo expõe a crítica à economia política.
A economia política reduziu a força de trabalho à mercadoria, discutindo-a apenas como fator de produção. Ao discutir a superexploração do trabalho, a economia política incorporou o entendimento reificado do trabalho apenas como fator de produção, e a força de trabalho como mercadoria. A discussão da superexploração do trabalho ficou – mesmo no âmbito dos economistas marxistas - no plano da economia política e, portanto, daquilo que Karl Polanyi denominou “economicismo científico”. Devemos lembrar que Marx – por exemplo – elaborou a crítica da economia política (o que muitos economistas marxistas esquecem).
O conceito de “superexploração” – tanto quanto o conceito de “exploração” – tem sido comumente utilizado na perspectiva da economia política do capital. Nesse caso, o trabalho diz respeito à força de trabalho como mercadoria, fator reificado de produção capaz de produzir o mais-valor. No caso da superexploração da força de trabalho, ela aparece – por exemplo - como mecanismo de aumento da exploração e/ou compensação para elevar a taxa de acumulação do capitalismo dependente (como nos diz Adrián Sotelo Valencia, é o caso da superexploração constitutiva). Na verdade, a distinção entre “superexploração constitutiva” e “superexploração operativa”, permanece – no limite - no horizonte da economia política.
Nossa hipótese é que existe uma determinação “oculta” do conceito de superexploração do trabalho vivo que diz respeito ao capital entendido não apenas como movimento do “valor em expansão”, mas como modo de controle estranhado do metabolismo social.
Esta é a questão.
O trabalho não se reduz à determinidade da mercadoria-força de trabalho.
É claro que a “exploração” (e a “superexploração”) degrada objetiva e subjetivamente o trabalho vivo, visto que a força de trabalho é consumida – intensiva e extensivamente – pelo capital (no capítulo 13 – “Maquinaria e Grande Indústria” de O Capital, Karl Marx destacou os impactos da exploração capitalista na saúde da força de trabalho nas fábricas do século XIX). A produção da mais-valia (absoluta e relativa), o consumo intensivo e extensivo da força de trabalho, danificam o organismo vivo da força de trabalho (a saúde física e mental do trabalho vivo).
Entretanto, a “destrutividade do trabalho vivo” enquanto determinação da “exploração” e da “superexploração do trabalho” aparece no discurso da economia política como determinação acessória ou faux frais (custos indiretos ou ocultos) da produção capitalista.
O que queremos salientar é que a “destrutividade do trabalho vivo” enquanto determinação da “exploração” e da “superexploração do trabalho” não é uma exterioridade a ser desprezada.
As condições históricas da crise estrutural do capital alteraram nossa perspectiva categorial, expondo-se deste modo, de forma desenvolvida, a produção destrutiva do trabalho vivo que decorre do movimento de desvalorização e negação do valor nas condições da crise estrutural do capital.
É a efetividade-limite da categoria de “exploração” nas condições da crise estrutural do capital - crise do mais-valor - que desvela o paroxismo da “superexploração destrutiva do trabalho vivo”.
A superexploração destrutiva do trabalho vivo diz respeito – por um lado - à dilapidação das energias vitais da força de trabalho enquanto subjetividade (corpo e mente) do trabalho vivo consumido pela produção do capital.
Mas por outro lado, diz respeito à destruição – imediata ou progressiva – da superpopulação excedente ou sobrante do trabalho vivo, os “inúteis” incapazes de serem absorvidos pela máquina de exploração do capital.
Uma das manifestações da produção destrutiva do trabalho vivo é a degradação da saúde pública como resultado das condições de autorreprodução destrutiva das pessoas humanas, inclusive aquelas que não fazem parte da PEA (população economicamente ativa).
A sociedade do capital é a sociedade do trabalho vivo – que não se reduz apenas à sociedade da força de trabalho ativa, mas sim, à totalidade viva do trabalho alienado dos meios de produção da vida social.
Portanto, diante da crise estrutural do capital, aumentou a pressão do sistema produtor de mercadorias sobre o trabalho vivo, obrigando-o a comprovar a sua “viabilidade produtiva” ou, pelo contrário, perecer. “Os mais fracos não têm vez” – diz o lema da produção destrutiva do trabalho vivo.
A lei do valor na economia globalizada representou a maior imposição do sistema “totalitário” do capital globalmente dominante e seu critério de viabilidade a tudo, “[...] desde as menores unidades de seu ‘microcosmo’ até as maiores empresas transnacionais, das relações pessoais mais íntimas aos processos decisórios mais complexos em consórcios monopolistas industriais, sempre favorecendo o mais forte contra o mais fraco” (Mészáros, 2011, p. 465).
A globalização capitalista neoliberal e a generalização da superexploração do trabalho representam a efetividade da lógica destrutiva do capital.
Assim, temos a degradação da subjetividade (corpo e mente) do trabalho, reduzindo-o à condição de uma objetividade reificada – um mero “fator material de produção descartável, ‘sem valor’ [...]” (Mészáros, 2011: p. 685). Essa é a tendência que vem se acentuando no capitalismo global e que diz respeito àquilo que Mészáros (2011, p. 634) identificou como sendo a “taxa de utilização decrescente do valor de uso”.
O Estado neoliberal opera a taxa de utilidade decrescente e autorreprodução destrutiva.
O capital não trata separadamente o valor de uso (que corresponde diretamente à necessidade) e o valor de troca, mas de uma forma que subordina radicalmente o primeiro ao segundo.
A efetividade plena ou efetividade-limite da obsolescência planejada e da lei do valor na economia globalizada faz com que a “taxa de utilização decrescente” se aplique a todas as mercadorias, incluindo a força de trabalho como mercadoria, ao reduzir sua vida útil. E quanto mais se exacerba a “desmedida do valor”, mais se agrava a destruição e/ou precariedade da força humana que trabalha subordinada aos padrões do capital.
Mas não apenas à força de trabalho consumida no processo de produção e circulação do capital - produtiva ou improdutiva - mas à totalidade do trabalho vivo - redundante e inútil aos padrões do capital (por exemplo, os inativos, velhos e pobres adoecidos, etc).
A taxa de utilização decrescente diz respeito não apenas à descartabilidade das coisas e ao desperdício que caracteriza o padrão irracional de consumo, mas diz respeito também à descartabilidade do trabalho vivo enquanto “força de trabalho qua mercadoria” e enquanto "pessoas sem valor".
No que diz respeito àqueles empregados no processo de produção do capital - trabalhadores produtivos ou improdutivos - consumo e destruição são funcionalmente equivalentes. É a lógica do valor "afetado de negação". O componente de destrutividade se realiza à medida que o consumo produtivo é efetuado, mas não apenas no ato do consumo produtivo – que é consumo destrutivo do corpo e mente do trabalho vivo. A destrutividade opera também no âmbito da reprodução social contra as populações sobrantes e redundantes à lógica produtiva do capital (os velhos, inúteis - por exemplo). É contra eles que se opera a necropolítica do Estado capitalista omisso face à crise sanitária permanente – mas ainda, o Estado capitalista penal que encarcera o crescente lumpesinato descartável.
Assim, o Estado capitalista neoliberal que opera a necropolítica do capital, expõe que a distinção vital entre “consumo” e “destruição” foi literalmente eliminada, transformando a reprodução social em autorreprodução destrutiva.
A superexploração destrutiva expõe a disfuncionalidade - para o capital - da “superpopulação relativa do capital”.
Para entender a característica desconcertante do capitalismo global é importante fazer uma distinção vital entre produção e autorreprodução.
Essa distinção é muito importante porque o capital não está preocupado com a produção como tal, mas apenas com a autorreprodução. Como observou Mészáros (2014, p. 296), do mesmo modo, o “movimento irresistível do capital em direção ao universalismo” (destacado por Marx) só se preocupa com os interesses de autorreprodução, não com os da própria produção.
Nas circunstâncias históricas em que a superexploração do trabalho era exclusivamente uma característica dos países dependentes, produção e autorreprodução podiam coincidir positivamente; e, quando isso ocorria, o capital podia aumentar as forças produtivas da sociedade e encorajar, na medida determinada e permitida por seus próprios interesses, o surgimento da “indústria geral”.
No entanto, sob a economia globalizada, produção e autorreprodução se tornaram diametralmente opostas. A disjunção radical entre produção capaz de aumentar a força produtiva da sociedade e autorreprodução do capital, não é mais uma possibilidade remota, mas um fato histórico, com consequências devastadoras para o futuro.
O imperialismo do capital opera não mais a expansão das forças produtivas sociais mas sim, as forças destrutivas do capital dessubstancializado - isto é, o capital ficticio.
Atualmente, as barreiras à produção capitalista são superadas pelo próprio capital, com o objetivo de assegurar sua própria reprodução – em uma extensão já ampla e cada vez maior – na forma de autorreprodução destrutiva, em oposição antagônica à produção genuína, capaz de aumentar a força produtiva da sociedade.
Por exemplo, a generalização da superexploração do trabalho na forma da superexploração destrutiva é a manifestação de que os limites do capital não podem mais ser definidos meramente como obstáculos materiais a um maior aumento da produtividade e da riqueza social e, portanto, como um freio ao desenvolvimento, mas como “um desafio direto à sobrevivência da humanidade”.
A superexploração destrutiva do trabalho pode fazer com que os limites do capital se voltem contra ele, como controlador do metabolismo social, à medida que o capital não for mais capaz de garantir, com os meios de que dispõe, as condições para sua autorreprodução destrutiva e – diz Mészáros (2014, p. 298) – “por isso, provocar o colapso de todo o metabolismo social”.
Mas não apenas o trabalho vivo pobre, envelhecido e doente, é resultado do movimento da superexploração destrutiva ou a produção destrutiva do trabalho vivo. O crescimento da quantidade do trabalho vivo encarcerado nas últimas décadas sob o Estado neoliberal expõe outra faceta da superexploração destrutiva: a destruição da superpopulação relativa redundante por meio do encarceramento.
Portanto, eis a importância da utilização do conceito de superexploração destrutiva do trabalho vivo: expor as candentes contradições do capital no século XXI.
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